Um relatório especial elaborado pelo comité para a protecção dos jornalistas
Em Julho de 2001, uma delegação do Comité para a Protecção dos Jornalistas (CPJ) visitou a capital de Moçambique, Maputo, para saber mais sobre a morte do jornalista Carlos Cardoso, morto à bala em Novembro de 2000. A delegação do CPJ era composta por um membro da Direcção, Clarence Page, uma editorialista do Chicago Tribune; pelo director-adjunto do CPJ, Joel Simon; pelo coordenador de programas para a Africa, Yves Sorokobi; pelo jornalista sul-africano, Phillip van Niekerk; e pelo jornalista moçambicano Fernando Lima. No decurso da visita, os membros da delegação encontraram-se com dezenas de jornalistas da imprensa escrita e dos audiovisuais – de órgãos estatais e privados, – bem como com funcionários superiores do governo moçambicano. O relatório que se segue baseou-se na informação obtida pela delegação do CPJ durante a sua visita a Moçambique, bem como em subsequentes entrevistas.
O que a delegação encontrou de mais importante foi o facto de, oito meses depois do assassinato de Carlos Cardoso, os jornalistas em Moçambique terem receio de fazer a cobertura de reportagens sensíveis, especialmente envolvendo corrupção, e que a inadequada investigação do caso Cardoso tinha contribuído para esse receio. Todos os que foram entrevistados pela delegação do CPJ concordaram que o medo provocado pelo assassinato de Carlos Cardoso tinha levado a uma séria quebra na reportagem de investigação. O CPJ é da opinião que a liberdade de imprensa em Moçambique ficou altamente comprometida com a morte de Carlos Cardoso, e que só uma investigação exaustiva e que explore agressivamente todas as pistas pode restaurar a confiança no seio dos jornalistas que se encontram no país. As averiguações foram particularmente desapontantes uma vez que o CPJ e outras organizações para a liberdade de imprensa tinham sido encorajados pelo passado de Moçambique, um país reconhecido por ser um lugar no qual tanto os media estatais como independentes têm competido livremente, sem interferência oficial.
Dois irmãos de uma família proeminente de banqueiros, um dos sócios, e três alegados pistoleiros estão na cadeia acusados de conspiração no assassinato de Carlos Cardoso. No entanto, jornalistas moçambicanos, observadores internacionais em Maputo, e outras pessoas que a delegação do CPJ consultou, expressaram sérias reservas acerca da investigação. Muitos realçaram que o relatório do governo está repleto de falhas e de inconsistências e que não tinham sido levados a cabo uma série procedimentos de investigação de rotina, especialmente, parece que os investigadores não examinaram a possibilidade do assassinato de Carlos Cardoso estar ligado, de alguma maneira, a uma das investigações jornalísticas em que estava a trabalhar na época em que foi morto. O CPJ concorda com os críticos locais que exigiram mais investigação. Várias recomendações específicas no sentido de mais investigação encontram-se em anexo a este relatório.
Enquanto organização de defesa da liberdade de imprensa a nível mundial, as motivações do CPJ em conduzir este relatório são as de procurar obter justiça para Carlos Cardoso e apoiar os jornalistas moçambicanos que têm estado a trabalhar num clima de medo e de intimidação. Pensamos que os jornalistas moçambicanos vão continuar a sentir-se inibidos até estarem certos de que justiça foi feita no caso Cardoso.
Crónica de um assassinato
Segundo a agência de notícias estatal, AIM, um homem de negócios local, Ayob Abdul Satar, o seu irmão, Momade Abdul Assife Satar, e o antigo gerente bancário, Vicente Ramaya, foram acusados de terem ordenado o assassinato de Carlos Cardoso. Três homens foram acusados de o terem executado: Aníbal António dos Santos Júnior (também conhecido como Anibalz hino), Manuel Fernandes, e Carlitos Rashid Cassamo. Os seis homens são acusados de conspiração em assassinato, assassinato, e tentativa de assassinato de Carlos Manjate, motorista de Carlos Cardoso. Os acusados têm estado todos sob custódia da polícia desde Março de 2001.
No início de Outubro de 2000, Anibalzinho e Rashid começaram a visitar os escritórios do Metical, uma newsletter publicada por Carlos Cardoso, comprando, todos os dias, números do jornal. Numa das suas primeiras visitas, Anibalzhino perguntou a pessoas que trabalhavam no Metical para indicarem quem era Carlos Cardoso.
O pessoal do Metical, mais tarde, recordou que Anibalzhino e Rashid normalmente pagavam os exemplares com notas altas o que causava problemas com o troco mas que dava tempo aos dois homens para examinarem o escritório. Estacionavam, frequentemente, o carro, um Volkswagen Citi Golf vermelho, na frente do jornal. Visitaram, pela última vez, o Metical no dia 17 de Novembro e, subitamente, deixaram de aparecer.
Cinco dias depois, na tarde de 22 de Novembro, Carlos Cardoso fechou a edição do dia e enviou por fax o Metical aos mais de 400 assinantes–sobretudo diplomatas, funcionários do governo, e pessoas ligadas aos negócios. Depois, entrou no carro com o motorista e dirigiram-se em grande velocidade a casa na esperança de chegar a tempo de ver um jogo de futebol que passava na televisão. Eram cerca das 6h 30m da tarde, a noite caía, e as ruas de Maputo fervilhavam com o trânsito.
A três quarteirões da porta do Metical, um Volkswagen Citi Golf vermelho e um Volkswagen 1600 sedan com vidros escurecidos bloquearam o carro de Carlos Cardoso. Segundo inúmeras notícias, dois homens armados de espingardas AK-47 saltaram do Citi Golf. Pulverizaram Carlos Cardoso com balas, matando-o instantaneamente e ferindo gravemente o motorista.
Como nasceu um jornalista de investigação
Nascido em 1951, numa família de exilados portugueses, Carlos Cardoso foi criado durante a luta armada de Moçambique pela independência do domínio de Portugal. Foi educado na Africa do Sul, irritando o regime de apartheid com a sua franqueza. Nos finais de 1974, a FRELIMO, movimento de guerrilha Marxista, tomou o governo (the Portuguese colonial governo). Entretanto, as autoridades da Africa do Sul deportaram Carlos Cardoso para Lisboa, onde permaneceu apenas alguns meses, regressando a Moçambique a tempo de testemunhar a declaração oficial de independência da FRELIMO no dia 25 de Julho de 1975.
Em 1976, ansioso por participar na construção de nova Africa socialista, Carlos Cardoso entrou para o jornal Tempo, um jornal estatal, mas o seu jornalismo agressivo frequentemente incomodava a liderança da FRELIMO. Em 1979, Carlos Cardoso foi enviado para fazer a cobertura musical para a rádio estatal, Rádio Moçambique, uma despromoção humilhante para o jovem repórter político em ascensão. Em 1980, depois de regressar às boas graças da FRELIMO, foi nomeado editor da agência noticiosa estatal, AIM, o que significou um passo em frente no sentido de uma aproximação do núcleo duro do partido. Em poucas semanas, Carlos Cardoso tornou-se amigo de funcionários superiores do partido, incluindo o então Presidente Samora Machel e continuou a cultivar estas fontes ao longo da sua carreira.
Em Outubro de 1986, o Presidente Machel morre num acidente de aviação na Africa do Sul, muitos culparam o regime de apartheid na Africa do Sul, apontando para o facto de que, sob a liderança de Machel, Maputo se tinha tornado um refúgio para os militantes exilados do Congresso Nacional Africano. Na época, a Africa do Sul estava também a apoiar a Resistência Nacional de Moçambique (RENAMO), um movimento de guerrilha originalmente patrocinada por Ian Smith, o líder branco da Rodésia, tendo em vista a sabotagem do governo de maioria negra em Moçambique.
Carlos Cardoso, um aventureiro por natureza, acabou por cair nas boas graças do novo governo, conduzido pelo Presidente Joaquim Chissano. Em 1989, Cardoso demitiu-se da AIM. Três anos mais tarde, com alguns outros que também tinham abandonado os media estatais, funda o Mediafax. A nova publicação colocou alta a fasquia da reportagem de investigação, publicando artigos sobre tópicos tão diversos como as negociações secretas que conduziram ao fim da guerra civil ou ao problema dos ministérios não conseguirem pagar as contas de electricidade. Um artigo no The New York Times, em Março de 1993, descrevia o Mediafax como a “vanguarda” da imprensa livre em Africa. Em Janiero de 1994, Carlos Cardoso e os seus parceiros lançaram também um novo semanário a que chamaram Savana.
Em 1997, Carlos Cardoso abandona o Mediafax e lança uma publicação rival chamada Metical. Fiel às suas raízes socialistas, dirigiu o Metical como uma cooperativa, onde editores e auxiliares recebiam o mesmo salário, mas enquanto Cardoso se mantinha fiel aos seus ideais, Moçambique estava a mudar radicalmente. Na década seguinte, a FRELIMO abandonou bastante a economia de planeamento central introduzida aquando da independência, em 1975.
Após a morte de Machel, o Presidente Chissano recebeu um país devastado por séculos de poder colonial e destroçado por uma guerra interna contra a RENAMO. Moçambique tinha sido um estado cliente dos Soviéticos desde a independência, mas a subida ao poder de Chissano coincidiu com as reformas da “glaznost” de Mikhail Gorbachev, a que se seguiu o colapso do bloco Soviético e o fim da Guerra Fria. A Moçambique nada mais restava do que cortejar as forças vitoriosas do Ocidente.
Assim, a FRELIMO converteu-se ao capitalismo. Em 1987, o Presidente Chissano aprovou um Programa de Reabilitação Económica do Banco MundialFMI e ordenou a privatização de mais de 1.200 empresas estatais. Em 1992, o governo capitalista, acabado de nascer, criou o Banco Comercial de Moçambique (BCM), uma decisão que haveria de ter consequências fatídicas para a carreira de Carlos Cardoso.
Anos ricos
A rebelião da RENAMO terminou com um acordo de paz assinado em Outubro de 1992, e as primeiras eleições multipartidárias em Moçambique realizaram-se dois anos mais tarde, em 1994. Desde então, a economia começou a atingir impressionantes taxas de crescimento. Moçambique, actualmente, tem uma das economias de mais rápido crescimento do mundo–uma taxa de crescimento de 7 por cento do PIB, em 1996, e, segundo o Banco Mundial, uma taxa de crescimento estimada em 10,4 por cento em 2001. A economia moçambicana ainda é movida pela agricultura, mas o país tem enormes recursos hidroeléctricos, petróleo e gás natural. Na realidade, o país tornou-se numa espécie de bandeira para o FMI e para o Banco Mundial, que atribuem o sucesso económico de Moçambique aos programas de ajustamento estrutural.
Apesar do impressionante crescimento, Carlos Cardoso manteve-se céptico sobre se a revolução capitalista de Moçambique estaria, de facto, a ajudar o empobrecido povo do país, utilizando os seus contactos na velha guarda socialista da FRELIMO para relatar o alastramento da corrupção e os abusos de poder. Carlos Cardoso e outros críticos do governo da FRELIMO acabaram por começar a acusar que a dimensão da economia legal (actualmente cerca de 4 biliões de dólares americanos num país de 19 milhões de pessoas) não poderia responder pelo crescimento fantástico na banca e no imobiliário de Maputo. Suspeitavam que houvesse lavagem de dinheiro, tráfico de drogas, e outras actividades ilegais. Em 2000, a Administraçào Americana Anti-Drogas (DEA), que tinha aberto um gabinete na vizinha Africa do Sul, em 1997, para monitorizar o explosivo crescimento da indústria de narcóticos na região, reportou que Moçambique era um dos principais portos de entrada de drogas ilegais oriundas do Sudeste Asiático e, ainda segundo a DEA, a maior parte deste tráfico é, posteriormente, enviado para a Europa.
Cardoso manteve-se simpatizante da FRELIMO até morrer, mas tornou-se cada vez mais desconfiado das políticas do governo que beneficiavam principalmente os ricos. A sua afronta só se intensificava à medida que descobria mais histórias que punham a descoberto como membros de um partido fundado para lutar pelos direitos dos pobres acumulavam enormes fortunas pessoais. Denunciou alguns negócios menos claros e não se retinha em desancar o governo nos seus editoriais.
A partir de 1998, para além do seu trabalho jornalístico, Carlos Cardoso tinha estado activamente envolvido na política local de Maputo enquanto membro do Conselho Municipal. Uma semana antes da sua morte, segundo múltiplas fontes em Moçambique, Cardoso tomou a palavra numa reunião do Conselho e atacou verbalmente o que ele descreveu como a “facção de bandidos” dentro da FRELIMO. Continuou também a escrever artigos no Metical denunciando figuras de topo da FRELIMO. Todos os que foram ouvidos pela CPJ em Maputo–desde os seus concorrentes até funcionários superiores do governo–foram unânimes no sentido de que Carlos Cardoso tinha sido morto porque era o único jornalista que tinha os contactos, a habilidade, e a tendência para confrontar a elite no poder com provas sobre a sua própria corrupção.
A investigação
Os críticos locais têm acusado a investigação do assassinato de Carlos Cardoso de ter falhado desde o início e a delegação do CPJ acredita que estas críticas têm fundamento. Segundo os relatos publicados, os agentes da polícia não tentaram sequer selar o local do crime, não tiraram medidas nem fotografaram o local, os agentes entrevistaram apenas uma testemunha ocular, Angelo Nyerere Mavele, que acabou por desaparecer sem deixar rasto. Os relatos publicados descrevem uma cena caótica na qual um civil que ia a passar pegou no carro de Carlos Cardoso e o conduziu, ainda com o corpo do jornalista lá dentro, desde o local do crime até à esquadra da polícia. A polícia moçambicana não deu explicações públicas sobre a razão por que não conseguiram selar o local do crime.
No dia seguinte ao assassinato, o pessoal do Metical ofereceu-se, segundo disseram ao serem entrevistados pelo CPJ, para fornecer testemunhos escritos aos agentes da polícia da Quinta Esquadra de Maputo. Um porta-voz do Comando da Polícia de Maputo, Abilio Quive, disse à Televisão Moçambicana que uma equipa especial de detectives e de operacionais secretos iriam trabalhar “24 horas por dia” no caso Cardoso, no entanto, a polícia, até meados de Dezembro, segundo o pessoal do Metical, ainda não tinha interrogado os empregados do jornal.
Os órgãos de imprensa de Maputo, inicialmente, seguiram passo a passo o trabalho dos investigadores. O semanário privado, Savana, queixava-se que os moçambicanos estavam “fartos de crimes sem criminosos, roubos sem ladrões, assassinatos sem assassinos, corrupção sem corruptos.” Entretanto, segundo jornalistas em Maputo, publicações pro-governo, como o Noticias e o Domingo, tornaram-se veículos para fugas de informação da polícia. Declarações contraditórias provenientes das autoridades contribuíram para destruir ainda mais a confiança pública. A 18 de Janeiro de 2001, segundo publicado no semanário Mediafax de 22 de Janeiro de 2001, sem qualquer explicação, o Comando da Polícia de Maputo suspendeu abruptamente toda a equipa policial que tinha estado a investigar o caso Cardoso. Num encontro com a delegação do CPJ, o Procurador-geral adjunto, General Rafael Sebastiano Santos, disse que a polícia não tinha sido demitida mas colocada noutros casos, no fim da investigação, um processo que ele descreveu como procedimento normal.
Em meados de Janeiro, o Mediafax citou um agente de informações como tendo revelado que um cidadão angolano não identificado estava detido na prisão de alta segurança de Maputo em ligação com o assassinato de Carlos Cardoso. O Mediafax contava que a polícia tinha detido o angolano num bar de Maputo depois de ele, embriagado, ter acusado “um indiano de uma casa de câmbios” de ter ordenado o crime. As suspeitas da polícia, segundo relatos da imprensa local e internacional, recaíram imediatamente sobre Ayob Abdul Satar, um homem de negócios moçambicano, de origem indiana, cuja família é proprietária da Unicambios, uma cadeia de casas de câmbio. O delator angolano foi mais tarde libertado e o seu nome nunca foi revelado, a polícia alegou, posteriormente, que o angolano estava “extremamente bêbado” quando proferiu a acusação, não se recordando sequer de ter sido detido.
Carlos Cardoso tinha estado a seguir as actividades da família Satar desde 1996, quando o Metical fez a cobertura de uma investigação a um esquema de lavagem de dinheiro no valor de 14 milhões de dólares no Banco Comercial de Moçambique (BCM). O Governo moçambicano acusou de envolvimento neste esquema a família Satar e Vincente Ramaya, um funcionário do BCM. Quando o esquema veio a público, dois membros da família Satar fugiram para o Dubai, nos Emiratos Árabes Unidos.
A pressão pública aumenta
A 21 de Fevereiro de 2001, quase um mês depois de os irmãos Satar terem sido publicamente acusados de serem os cérebros do assassinato de Carlos Cardoso, o Metical publicava uma reportagem intitulada “Crónica de uma Não-Investigação,” que desancava a investigação policial, imediatamente após a publicação do artigo, a polícia começou a fazer progressos visíveis na investigação do caso Cardoso. A 1 de Março, o Ministro do Interior, Almerino Manhenje, convidou todos os repórteres de todas redacções de Maputo, à excepção da publicação de Carlos Cardoso, o Metical, para um “briefing” no seu gabinete. O Ministro anunciou que tinham sido efectuadas algumas detenções e que a polícia estava em posse de itens usados directa ou indirectamente no crime. Mas, segundo o relato da agência noticiosa estatal, AIM, a conferência de imprensa não chegou a durar cinco minutos e o Ministro declinou responder a quaisquer perguntas. “Não se metam a especular,” aconselhou ele aos repórteres presentes. “Deixem-nos trabalhar. Se disserem que estamos silenciosos, é porque estamos a trabalhar.”
Cerca de uma semana mais tarde, o semanário pró-governo, Domingo, revelou os nomes de dois dos detidos: Anibalzhino, também conhecido como Aníbal António dos Santos Júnior, e Manuel Fernandes, que era também um conhecido criminoso local. Um outro suspeito, Carlitos Rashid Cassamo, tinha sido tirado à força de um autocarro por dois jornalistas do Metical e entregue à polícia por volta do dia 10 de Março. Trabalhadores do Metical e o Gabinete do Procurador-geral tinham identificado Rashid como sendo o homem que acompanhava Anibalzhino aos escritórios do Metical nas semanas anteriores ao assassinato de Carlos Cardoso; o nome de Fernandes nunca antes tinha aparecido ligado ao crime.
O Domingo relatou que Anibalzhino e Fernandes tinham sido deportados da vizinha Suazilândia após terem sido acusados pela polícia daquele país de entrada ilegal. A reportagem do Domingo, publicada logo alguns dias depois da conferência de imprensa do Ministro, entrava em grandes pormenores, apontando Anibalzhino como o líder de um grupo de três pistoleiros que alegadamente teriam assassinado Carlos Cardoso por 25 mil dólares, cada. O Domingo dizia que o crime tinha sido “encomendado por outros” mas não elaborava e, muito embora o semanário pro-governo não revelasse as suas fontes de informação, o facto de publicar fotocópias dos passaportes dos suspeitos fez com que a imprensa local reclamasse que apenas a polícia o poderia ter feito.
Pontas soltas
A 13 de Março de 2001, umas três semanas após a detenção de Anibalzhino, a polícia prendeu Momade Abdul Satar e Ayob Abdul Satar e acusou-os de terem ordenado o assassinato de Carlos Cardoso. Foi também detido Vincente Ramaya, um antigo gerente de balcão do BCM na capital, que estava implicado no escândalo de 1996 deste Banco.
A 29 de Março, segundo os relatos da imprensa local, o Gabinete do Promotor Público anunciou que Manuel Fernandes, um dos três detidos, tinha confessado o crime. De acordo com a confissão de Manuel Fernandes, tinha sido contratado para matar Carlos Cardoso por Anibalzhino, que, por sua vez, tinha sido contratado por Momade Satar. Manuel Fernandes disse à polícia que, no dia em que Carlos Cardoso tinha sido morto, Satar se tinha encontrado com Anibalzhino a cerca de dois quarteirões de distância do local do crime e lhe tinha dado as armas do crime, duas espingardas AK-47, num saco de desporto. Segundo Manuel Fernandes, este encontro teve lugar 30 minutos antes do assassinato. Também apontou Anibalzhino e Carlitos Rashid Cassamo como tendo sido os dois homens que abriram fogo sobre Carlos Cardoso e sobre o motorista. Segundo a imprensa local, Manuel Fernandes não explicou qual o seu papel no ataque, e, mais tarde, tentou retirar a sua confissão alegando que tinha sido coagido pela polícia.
Os outros dois alegados pistoleiros, Anibalzhino and Rashid, têm consistentemente negado qualquer envolvimento mas a acusação afirma que existem provas sólidas contra os dois homens. No Gabinete do Procurador-geral, o acusador do governo, Rafael Sebastiano Santos, disse ao CPJ que, para além da confissão de Manuel Fernandes, uma testemunha ocular, Angelo Nyerere Mavele, tinha colocado os dois homens no local do crime. O acusador citou Mavele–o qual, depois, veio a desaparecer–como tendo dito que Momade Satar estava no Citi Golf vermelho com os pistoleiros, o acusador afirmou ainda dispor de provas que apoiavam esta argumentação mas recusou-se a dar mais pormenores.
Enquanto a acusação declara que tem um caso sólido contra Momade Satar e os dois atiradores, não libertaram nenhuma prova que pudesse implicar os dois outros alegados conspiradores, o irmão de Momade, Ayob, e o antigo gerente de balcão do BCM, Ramaya. De facto, a única ligação óbvia entre a família Satar e Ramaya é o facto de ambos terem estado implicados no escândalo de 1996 do BCM.
Quase desde o início, funcionários moçambicanos mantiveram a opinião de que o assassinato de Carlos Cardoso estava relacionado com as reportagens que ele fizera sobre o caso BCM, mas a teoria oficial continua em aberto. Vozes críticas apontam que o Metical nem sequer despoletou a história do BCM, e que, em qualquer caso, na altura do assassinato de Cardoso, já tinha deixado de ser notícia.
Terra, dinheiro, política
Desde as detenções dos Satars, de Ramaya, e dos três alegados pistoleiros contratados, as autoridades moçambicanas têm-se recusado a continuar a investigar o assassinato de Carlos Cardoso. As autoridades não prosseguiram o que seria normal que era determinar em que reportagens estava Cardoso a trabalhar na época em que foi morto. A delegação do CPJ soube que Carlos Cardoso, antes de morrer, estava a seguir histórias envolvendo a banca e o desenvolvimento imobiliário, e talvez outros assuntos.
Uma das histórias que Cardoso estava a estudar envolvia alegações de corrupção no Banco Austral, um banco local com problemas. A partir de Março de 2000, Carlos Cardoso utilizou documentos obtidos ilegalmente para ajudar a compreender o caso da alegada corrupção no Banco Austral. Durante este período, o Metical também publicou vários artigos ligando os escândalos do BCM e do Banco Austral a um maior padrão de corrupção indiscriminada no governo. Carlos Cardoso, no seu último artigo publicado, especulava que o dinheiro da droga estava a ser lavado através do BCM e do Banco Austral com cumplicidade oficial.
Depois da morte de Carlos Cardoso, o Banco Central tomou o controlo do Banco Austral, cujo deficit crescia cada dia que passava. Um auditor sénior do Banco Central, António Siba-Siba Macuacua, foi nomeado para dirigir o Banco Austral e preparar a respectiva venda, mas Siba-Siba foi assassinado a 11 de Agosto de 2001.
O Presidente Chissano declarou que o assassinato de Siba-Siba revelava a força e o poder do crime organizado em Moçambique. O Presidente acrescentou, segundo o semanário de Maputo, Savana, que não confiava na “imparcialidade e integridade da polícia moçambicana,”.
O “boom” do imobiliário
Pela mesma altura que Carlos Cardoso seguia o caso do Banco Austral, investigava também o “boom” do imobiliário em Maputo. Carlos Cardoso pensava que ambos os escândalos estavam ligados a um padrão mais alargado de lavagem de dinheiro. Um dos negócios de imobiliário que chamara a atenção dele tinha sido assinado em Julho de 1998. O projecto, cuja estimativa de custo era de 50 milhões de dólares americanos, envolvia a construção de 2.000 fogos, de médio e baixo custo, para residência, em terrenos pertencentes à cidade de Maputo. Segundo os relatos de Carlos Cardoso, os principais accionistas eram duas empresas de investimento da Malásia e o grupo de investimento SIR, de Moçambique, que tinha relações próximas com muitos funcionários superiores da FRELIMO.
Para além do seu trabalho de jornalista, Carlos Cardoso foi também membro do Conselho Municipal de Maputo, órgão que supervisiona a administração pública na capital. Uns meses antes da sua morte, Carlos Cardoso fez várias intervenções no Conselho criticando os efeitos do assustador “boom” do imobiliário em Maputo sobre a pobreza na capital, fazendo também perguntas (dirigidas ao seu colega do Conselho, Octávio Muthemba, entre outros) sobre diversos e grandes projectos de imobiliário, incluindo alguns que, alegadamente, tinham prosseguido sem autorização do Conselho.
Insubstituível
Carlos Cardoso era uma figura única do jornalismo moçambicano. “Era um ponto de referência na nossa sociedade,” declarou, recentemente, o antigo ministro da informação, Ruiz de Cabaco. “E não só pela variedade de assuntos que tratou, mas também pela criatividade e pela força da sua argumentação. Os que o mataram, mataram também o sentimento de independência da imprensa.”
A delegação do CPJ percebeu que o impacto do trabalho de Carlos Cardoso, no entanto, foi muito além das redacções de Maputo. Moçambique, com a sua impressionante taxa de crescimento, é uma das poucas histórias de sucesso do FMI e do Banco Mundial. Os funcionários destas instituições mostravam Moçambique como um exemplo aos outros países que sofriam com o reajustamento estrutural. Carlos Cardoso forçou Moçambique a considerar a possibilidade de o seu crescimento estar a ser conduzido não por uma política económica sólida, mas pelo tráfico de drogas e pela lavagem de dinheiro e que os benefícios do crescimento estavam, em grande parte, limitados a uma pequeníssima elite.
O debate sobre o futuro de Moçambique está a aquecer com a aproximação das eleições presidenciais, marcadas para 2004. O Presidente Chissano disse, em Maio, que não se recandidataria e, muito embora agora diga estar a reconsiderar, a sua aparente decisão de abandonar o poder abriu uma luta acesa pelo poder no seio da FRELIMO entre os “modernistas,” que apoiam o programa de liberalização económica, e os “tradicionalistas,” que reclamam que o partido se afastou demasiado das suas raízes socialistas. Membros das duas facções têm sido acusados de corrupção. Mas num tempo em que os moçambicanos precisam desesperadamente de informação sobre o seu governo e sobre a sua sociedade, os jornalistas locais têm receio de publicar o que sabem.
Epílogo
Segundo a Agência Noticiosa, AIM, ainda não foram marcados os julgamentos de nenhum dos suspeitos da morte de Carlos Cardoso,. mas a AIM noticiou, a 29 de Abril de 2002, que o Supremo Tribunal de Moçambique confirmou a decisão do ano passado de um magistrado de investigação de que há prova suficiente para os levar a tribunal.
O Metical nunca recuperou da morte de Carlos Cardoso. Em Fevereiro de 2001, Nympine Chissano, filho do Presidente Chissano, pôs um processo criminal por difamação contra um dos mais próximos colaboradores de Cardoso e repórter principal do Metical, Marcelo Mosse. O filho do Presidente reclama uma compensação no valor de 80.000 dólares devido a um artigo publicado no Metical, a 21 de Fevereiro, alegando que ele tinha sido detido por pouco tempo na Africa do Sul por volta de 15 de Fevereiro.
Outros órgãos de informação reportaram que Nympine tinha sido preso por contrabando de droga; o Metical não o fez. Nympine, contudo, só processou o Metical, que o havia perseguido com persistência devido aos seus alegados negócios corruptos. Segundo várias fontes em Maputo, o próprio Presidente Chissano colocou-se ao lado do filho contra Marcelo Mosse e o Metical. Em Março, o Presidente convidou vários editores locais para uma reunião informal no palácio presidencial, durante o qual declarou que a reportagem de Mosse tinha manchado a reputação da família. Segundo a AIM, a advogada da família Cardoso, Lucinda Cruz, alegou falhas processuais na acusação e apelou para o Tribunal da Cidade do Maputo.
Carlos Cardoso era o proprietário do Metical, mas após a sua morte, o jornal passou para os seus dois filhos menores, Ibo e Milena, que são representados pela mãe, Nina Berg. No pior dos casos, o Tribunal poderá enviar Mosse para a prisão e ordenar à família Cardoso o pagamento de milhares de dólares.
Sob a pressão, o Metical fechou nos finais de Dezembro de 2001, um ano após o assassinato de Carlos Cardoso.
Recomendações
O CPJ solicita que o governo de Moçambique tome as seguintes medidas para assegurar que a investigação do assassinato de Carlos Cardoso continue a progredir:
• A polícia e os acusadores têm de fazer o necessário para localizar Angelo Nyerere Mavele, a única testemunha ocular do crime. A polícia reconheceu ter entrevistado Mavele após o crime mas, desde então, não conseguiu localizá-lo.
• A polícia e a acusação deveriam também conduzir uma investigação completa à conduta da polícia no local do crime, examinando, especificamente, o porquê da polícia ter falhado em selar o local do crime.
• Os investigadores deveriam tentar determinar a natureza das investigações que Carlos Cardoso estava a levar a cabo na altura da sua morte e deveria interrogar todas as pessoas que poderiam estar envolvidas ou virem a ser afectadas pelas reportagens de Cardoso. Sabe-se que Carlos Cardoso estava a conduzir uma investigação quanto ao Banco Austral e uma outra relacionada com o imobiliário, podendo também haver outras.
• Quanto a um outro assunto, muito embora relacionado, o CPJ apela a Nympine Chissano, filho do Presidente Chissano, para retirar o processo criminal de difamação contra o editor do Metical, Marcelo Mosse. O assassinato de Carlos Cardoso, a que se juntou o processo criminal, conseguiu encerrar o Metical, o que é uma grande perda para todos os moçambicanos. O CPJ é de opinião que o processo contra o Metical não tem mérito e que, em qualquer caso, a difamação nunca deveria ser uma ofensa criminal. Em vez de apoiar o processo do filho, como o Presidente Chissano fez no encontro com os jornalistas moçambicanos, em Março de 2001, o Presidente deveria condená-lo.