O Caminho para a Justiça

Capítulo 3: Onde a Impunidade Prospera

O clima de impunidade chegou a um trágico ponto culminante em 23 de novembro de 2009, quando homens armados emboscaram uma caravana que escoltava o candidato Esmael “Toto” Mangudadatu enquanto ele se preparava para cumprir as formalidades burocráticas necessárias para se tornar candidato a governador de província nas Filipinas. Os atacantes mataram 58 pessoas, entre elas 30 jornalistas e dois trabalhadores da mídia, o maior número de jornalistas assassinados em um único ato desde que o CPJ começou a acompanhar esse tipo de caso, em 1992.

O assassinato em massa na periferia da cidade de Ampatuan provocou imensa indignação. Mas ninguém foi condenado por desempenhar qualquer papel no massacre, e poucos estão surpresos com isso. Muitos viram o ataque como um resultado natural da conjunção de poderosos grupos armados, corrupção e inação do governo filipino e aplicação deficiente da lei. Este ciclo de violência e impunidade não mostra sinais de arrefecimento.

O Caminho para a Justiça
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Mais de 50 jornalistas foram assassinados devido a seu trabalho nas Filipinas entre 2004 e 2013. Além disso, centenas de defensores de direitos humanos, ativistas e políticos se tornaram vítimas de execuções extrajudiciais, em sua maioria, sem consequência para os agressores. E nisto a Filipinas não está sozinha.

Assassinatos de jornalistas raramente são eventos isolados. Eles não são geralmente o ato espontâneo de alguém que ficou com a cabeça quente, irritado com o que leu no jornal. Muitas vezes eles são premeditados – ordenados, pagos e orquestrados. Eles se encaixam em dois padrões gerais: intimidação contra aqueles que revelam a corrupção, expõem a má conduta política e financeira, ou informam sobre crimes; e as circunstâncias nas quais a violência cotidiana praticada por grupos militantes ou pelo crime organizado obstrui a justiça. Esses padrões se repetem pelo simples fato de que é muito fácil ficar impune pela morte de um jornalista. De acordo com a pesquisa do CPJ, não há consequências para os assassinos de jornalistas em quase nove de 10 casos.

Andal Ampatuan Jr., no centro, é levado ao tribunal sob a acusação de liderar o ataque a 57 pessoas, incluindo 32 jornalistas e trabalhadores da mídia, no massacre de 2009 em Maguindanao. (Reuters/Cheryl Ravelo)
Andal Ampatuan Jr., no centro, é levado ao tribunal sob a acusação de liderar o ataque a 57 pessoas, incluindo 32 jornalistas e trabalhadores da mídia, no massacre de 2009 em Maguindanao. (Reuters/Cheryl Ravelo)

A cultura de impunidade no assassinato de jornalistas é autoalimentada. Onde a justiça falha, a violência muitas vezes se repete, de acordo com as tendências documentadas ao longo dos últimos sete anos pelo Índice Global de Impunidade do CPJ. O Iraque, por exemplo, tem, de longe, o maior número de assassinatos não resolvidos e registrou nove novos assassinatos de jornalistas em 2013. A Rússia presenciou mais dois jornalistas assassinados no ano passado, elevando para 14 o total de mortes relacionadas com as atividades jornalísticas com impunidade total desde 2004. Em Bangladesh, Brasil, Colômbia e Índia, um total de sete jornalistas foram assassinados em 2013. Todos, exceto um dos países em que ocorreram assassinatos de jornalistas em 2013, tinham registros de impunidade em quatro ou mais assassinatos anteriores. “Todo ato de violência cometido contra um jornalista que fica sem investigação e impune é um convite aberto para mais violência”, disse a Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Navi Pillay, no início deste ano em uma reunião do Conselho de Direitos Humanos.

Há muitas maneiras de a impunidade generalizada e duradoura tomar conta quando se trata de ataques a jornalistas. Em alguns casos, é a falta de vontade política. Em outros, o conflito ou a deficiente aplicação da lei mantém a justiça encurralada. Na maioria das situações, é uma combinação destes fatores. Examinar os ambientes nos quais a impunidade prospera é o primeiro passo para acabar com ela.

Os governos muitas vezes se queixam de que a justiça está fora de seu controle. A impunidade em casos de assassinatos de jornalistas é a ponta do iceberg, seu argumento prossegue, e problemas sistemáticos imensos de corrupção generalizada para continuar a luta são os verdadeiros problemas. É verdade que ambientes inseguros ou disfuncionais levam à impunidade, mas o CPJ tem constatado repetidamente que a falta de vontade política para julgar é o fator mais frequente por trás dos números alarmantes de casos não resolvidos. Os Estados também muitas vezes mostram que não estão dispostos, e não simplesmente que são incapazes, a buscar a justiça quando se trata de assassinatos de jornalistas. “O elemento mais importante é a vontade política”, disse Frank LaRue, o ex-relator especial da ONU sobre a promoção e proteção do direito à liberdade de opinião e expressão.

O CPJ documentou diversos casos que não conseguem avançar para que seja feita justiça, apesar das evidências que apontam para possíveis culpados. Em outros, os policiais não conseguiram seguir pistas, entrevistar testemunhas, recolher provas suficientes, ou persistir até chegar a processos completos. Quando um editor de jornal de destaque do Sri Lanka, Lasantha Wickramatunga, foi assassinado em 2009, seus agressores o espancaram com barras de ferro e bastões de madeira em uma rua movimentada, à vista de soldados de uma base aérea. De acordo com sua viúva, Sonali Samarasinghe, a polícia colheu poucos testemunhos e relatou a morte de Wickramatunga como tendo ocorrido em meio a um tiroteio, contradizendo relatórios médicos que não mencionam quaisquer ferimentos de bala. Estas foram apenas duas das várias reclamações e questões levantadas em uma investigação que, apesar das promessas do presidente Mahinda Rajapaksa de resolver o crime, passou seu quinto aniversário sem que tivesse ocorrido qualquer julgamento.

Um membro da imprensa segura uma foto do jornalista do Sri Lanka Dharmeratnam Sivaram em um protesto em 2013. Sivaram foi sequestrado em abril de 2005 e encontrado morto no dia seguinte. (Reuters/Dinuka Liyanawatte)
Um membro da imprensa segura uma foto do jornalista do Sri Lanka Dharmeratnam Sivaram em um protesto em 2013. Sivaram foi sequestrado em abril de 2005 e encontrado morto no dia seguinte. (Reuters/Dinuka Liyanawatte)

Evidências deste e de outros casos frequentemente sugerem que os autores são funcionários superiores do sistema de poder do país. Dados do CPJ, analisando casos desde 1992, mostram que agentes do Estado, funcionários do governo ou militares são suspeitos de serem responsáveis por mais de 30 por cento dos assassinatos de jornalistas. Em centenas de outros casos, grupos políticos ou pessoas que exercem forte influência econômica e política são os assassinos suspeitos. Contra essa realidade não é de estranhar que a justiça seja muitas vezes cortada pela raiz.

“Os jornalistas podem se tornar vítimas de vinganças políticas ou se tornar alvos de políticos. Políticos locais também podem ter interesses comerciais relacionados ao que os jornalistas escrevem”, disse Geeta Seshu, editor consultor do The Hoot, um defensor da mídia na Índia, onde sete jornalistas foram assassinados com total impunidade na última década. “Membros de partidos políticos que têm como alvo os jornalistas são protegidos por seus partidos e podem exercer grande influência sobre a administração ou a polícia local, de modo a retardar ou dificultar a investigação.”

Em Gâmbia, após o assassinato de Deyda Hydara, respeitado editor e colunista conhecido por suas críticas ao presidente Yahya Jammeh, as autoridades não entrevistaram pelo menos duas testemunhas-chave que foram feridas com Hydara no ataque de 2004, nem conduziram testes básicos de balística – falhas recentemente reconhecidas pelo tribunal regional da Comunidade Econômica dos Estados do Oeste Africano. O tribunal afirmou, em junho de 2014, que Gâmbia não realizou uma investigação válida sobre o assassinato de Hydara, em parte porque a Agência Nacional de Inteligência (ANI), ela mesma suspeita, conduziu a investigação. “Como pode a ANI fazer uma investigação quando ela é uma das suspeitas?”, disse Rupert Skilbeck, diretor de litígio na Iniciativa de Justiça Instituto Sociedade Aberta, que trabalhou com advogados para levar o caso ao tribunal regional.

Em todo o mundo, tem havido um fracasso quase total para processar aqueles que encomendam crimes contra jornalistas. Em apenas 2 por cento dos casos de jornalistas assassinados por seu trabalho de 2004 a 2013 foi obtida a completa justiça. Na maior parte dos casos, não houve qualquer justiça, ou ocorreram condenações apenas de cúmplices e pistoleiros de nível mais baixo, mas não dos mandantes. Como exemplo: No famoso julgamento do assassinato da jornalista russa Anna Politkovskaya, mesmo a menção ao suposto mandante foi mantida fora do tribunal; foram ordenados procedimentos a portas fechadas para outro suspeito proeminente que poderia ter sua identidade revelada.

A condenação, no ano passado, do assassino do popular jornalista de rádio filipino Gerardo Ortega foi uma vitória para a justiça. Mas também era um lembrete decisivo de que dois suspeitos, Joel Reyes e Mario Reyes, irmãos e ambos poderosos políticos locais a quem Ortega tinha acusados de corrupção, ainda não tinham sido presos, apesar do depoimento do pistoleiro condenado implicando-os. Em uma declaração que ecoa os sentimentos de dezenas de outros membros de famílias de jornalistas mortos, Michaella Ortega, filha de Gerardo Ortega, apelou às autoridades para buscar a plena justiça contra aqueles com “o poder, o dinheiro, e o motivo para terem assassinado meu pai”.

A vitória parcial da família Ortega é típica de um em cada 10 casos em que há alguma forma de justiça. Quase todos os processos bem sucedidos são o resultado de intensa pressão internacional e local, da atenção da mídia, da busca obstinada de familiares, de investigações paralelas por colegas ou contestações jurídicas por grupos da sociedade civil. Quando pressionado por todos os lados os Estados respondem, provando que quando há vontade política há um caminho.

Se a falta de vontade política é o primeiro adversário da justiça, o conflito não fica muito atrás. As várias formas de conflitos – lutas sectárias, combates ou insurgências políticas, tal como definidos no direito internacional – são contextos para alguns dos climas mais arraigados de impunidade. Jornalistas que operam nestes ambientes são expostos a risco físico imenso. Muitos são feridos ou mortos pelo fogo cruzado ou por atos terroristas no curso dos trabalhos do dia a dia. Mesmo em meio a esses perigos, no entanto, o assassinato em função do trabalho é a razão número 1 dos jornalistas serem mortos. Mais de 95 por cento das pessoas alvo são jornalistas locais, a maioria deles cobrindo política, corrupção, guerra ou crime no momento de suas mortes.

Nos últimos cinco anos, o Iraque e a Somália têm ocupado os dois primeiros lugares no Índice de Impunidade do CPJ, com um total de 127 casos de jornalistas assassinados, mais de duas vezes o número de mortos em fogo cruzado e missões perigosas. A Síria, um dos poucos países onde as mortes em fogo cruzado de jornalistas superam os assassinatos, mostra sinais de seguir o exemplo. Ela apareceu no Índice Global de Impunidade do CPJ pela primeira vez em 2014, com sete casos de assassinatos direcionados – um número que desde então tem crescido com as decapitações chocantes dos jornalistas independentes norte-americanos James Foley e Steven Sotloff pelo grupo militante Estado Islâmico. A taxa de impunidade total para estes três países juntos é de 99 por cento.

Grupos sectários armados realizaram a maioria destes ataques. Acredita-se que o Estado Islâmico e outros grupos militantes sunitas dissidentes da Al-Qaeda sejam os responsáveis por alguns dos assassinatos direcionados de nove jornalistas no ano passado no Iraque, de acordo com a pesquisa do CPJ. Em anos anteriores de alta violência nesse país, jornalistas iraquianos foram igualmente alvo de grupos sunitas e xiitas. Na Somália, os militantes do Al-Shabaab, durante anos, ameaçaram e agrediram jornalistas durante a cobertura das atividades do grupo. Com este fato vem uma pergunta crucial: Quando os Estados estão em guerra contra os autores de violência contra a imprensa, os Estados podem ser culpados por não processar esses grupos?

Alguns dizem que a resposta é não. “A Somália tem estado em conflitos desde 1991 e o país ainda está em guerra com extremistas”, disse Abdirahman Omar Osman, especialista em mídia e conselheiro do governo da Somália para comunicações estratégicas. “A Somália enfrenta desafios como a falta de recursos, a falta de instituições em funcionamento, falta de segurança, com o Al-Shabaab lutando contra o governo, falta de boa governação, e muito mais.”

No entanto, colegas da imprensa estão frustrados com o que veem como inação completa. “A polícia não faz nada depois que o jornalista é morto”, disse Abukar Albadri, diretor da companhia de mídia da Somália Badri Media Productions. “Se o governo quisesse processar os assassinos de jornalistas ele tornaria todas as suas promessas funcionais. Ele se comprometeu a formar uma força-tarefa que investigaria os assassinatos dos jornalistas; não funcionou. Ele se comprometeu a investigar e trazer os culpados à justiça; não há nenhuma investigação feita em qualquer caso até agora.”

A inação é particularmente acentuada nos casos em que a suspeita aponta para os próprios funcionários do governo, e outros culpados não protegidos pelo poder, mas dificilmente identificáveis por pertencer a grupos armados. Na cidade iraquiana de Kirkuk, por exemplo, assaltantes atiraram no escritor freelance Soran Mama Hama em 2008, pouco depois de ele ter denunciado a cumplicidade da polícia no comércio de prostituição local. Apesar das promessas das autoridades locais feitas ao CPJ de que dariam atenção ao caso, nenhuma prisão foi relatada.

Um manifestante protesta contra o homicídio de Sardasht Osman, jornalista de 23 anos de idade que foi sequestrado e morto em 2010. O assassino não foi levado à justiça. (YouTube/FilmBrad)
Um manifestante protesta contra o homicídio de Sardasht Osman, jornalista de 23 anos de idade que foi sequestrado e morto em 2010. O assassino não foi levado à justiça. (YouTube/FilmBrad)

Em um relatório especial sobre a impunidade no Curdistão iraquiano, o CPJ examinou outros casos, incluindo a morte, em 2010, de Sardasht Osman, um estudante de jornalismo muito popular por seus artigos sobre corrupção envolvendo funcionários do alto escalão do governo. Osman foi raptado e encontrado morto dois dias depois. As forças de segurança do Curdistão atribuíram o assassinato a um grupo afiliado à Al-Qaeda, mas parentes e colegas consideraram esta responsabilização implausível. Setenta e cinco jornalistas, editores e intelectuais curdos culparam o governo. “Acreditamos que o Governo Regional do Curdistão e suas forças de segurança são os primeiros responsáveis ​​e, acima de tudo, eles devem fazer tudo para encontrar o responsável”, disseram em um comunicado na época.

Na Nigéria, onde cinco jornalistas foram assassinados impunemente na última década, uma dinâmica similar está ocorrendo, embora com menores níveis gerais de violência. Em resposta ao Índice Global de Impunidade do CPJ 2013, um porta-voz do presidente Goodluck Jonathan culpou o fogo cruzado do grupo extremista Boko Haram pelas mortes de jornalistas. O Boko Haram é claramente responsável por muitas mortes de jornalistas na Nigéria. Mas os assassinatos não foram investigados em casos como o do editor Bayo Ohu, que foi baleado na porta de sua casa por seis indivíduos não identificados, em retaliação, colegas acreditam, por suas reportagens sobre a política local.

O terror do Boko Haram também não oferece uma explicação para o assassinato, em 2006, do jornalista premiado Godwin Agbroko, que nunca foi totalmente investigado. Agbroko foi encontrado morto em seu carro, com uma única bala no pescoço, sem que nada tivesse sido roubado. A polícia inicialmente disse que o crime parecia ser um assalto à mão armada, mas mais tarde sugeriu que poderia ser um assassinato; não houve avanços desde então. A família de Agbroko ainda luta por respostas oito anos depois. “Ficou tudo envolto em incerteza e não houve nenhum procedimento para a investigação”, disse a filha do jornalista Teja Agbroko Omisore ao CPJ. “Nada foi aberto. Nada foi feito”.

Durante seu primeiro discurso à nação em 2011, o presidente filipino Benigno Aquino III prometeu que seu governo trabalharia para acabar com a impunidade e traria uma era de “justiça rápida”. Suas palavras foram bem recebidas por colegas e familiares das vítimas do massacre de Maguindanao em 2009, que têm procurado resolução e alívio após o assassinato de 58 pessoas, 32 membros da imprensa entre elas. Mas a justiça não tem sido rápida.

No início do caso Maguindanao, poucos observadores esperavam um julgamento rápido. Com 58 vítimas e mais de 180 suspeitos, até mesmo o sistema mais eficiente seria duramente pressionado para chegar à justiça rapidamente. No entanto, como o quinto aniversário deste crime hediondo se aproxima sem condenações à vista, a lentidão da justiça tem preocupado muitas pessoas, no sentido de que a justiça está sendo insuportavelmente prolongada ou severamente comprometida, ou ambos.

O julgamento do massacre de Maguindanao foi descrito pelo presidente Aquino como um “teste decisivo” para a justiça nas Filipinas, uma chance de mostrar que a democracia mais antiga da Ásia tem um limite para o quanto de impunidade vai tolerar. Em vez disso, os processos têm ressaltado as falhas do país.

Os países onde o CPJ registrou altos índices de violência contra a imprensa e impunidade, como as Filipinas, muitas vezes sofrem de capacidade de investigação e de processar os acusados fracas, ou o seu sistema de justiça tem sido cooptado pela corrupção e intimidação violenta. Os eventos do massacre refletem esse padrão de impunidade, uma investigação falha, privilégios para alguns suspeitos em detenção, procedimentos ruins para convocação e proteção de testemunhas, e táticas protelatórias da defesa – de acordo com Prima Jesusa Quinsayas, uma advogada que trabalha para o Fundo de Liberdade para Jornalistas Filipinos. Quinsayas é também uma promotora privada que representa muitas das famílias das vítimas. No sistema de justiça Filipinas, os promotores privados podem trabalhar em conjunto com a equipe da promotoria do Estado.

Os dados recolhidos são amplamente reconhecidos como falhos. Grupos de imprensa locais organizaram uma missão de investigação imediatamente após os assassinatos e constataram que a área circundante à cena do crime não tinha sido isolada. Equipes de resgate usaram uma retroescavadeira ao invés de pás para resgatar as vítimas soterradas, um método que pode ter destruído provas forenses. Bens pessoais de vítimas, incluindo cartões de mensagens de telefones celulares, não tinham sido recolhidos. “O caso não chegaria a lugar algum se você confiar em provas”, disse Jose Pablo Baraybar, diretor executivo da Equipe Peruana de Antropologia Forense, uma ONG peruana convidada a examinar a cena do crime. Dezenas de suspeitos ainda não foram presos.

Devido a essas deficiências, os depoimentos das testemunhas foram fundamentais para o caso. Mas, em uma série de contratempos violentos, três testemunhas importantes foram mortas. Um deles, Esmael Amil Enog, foi encontrado cortado em pedaços e enfiado dentro de um saco. Enog, um motorista contratado no dia do massacre, havia oferecido testemunho direto, identificando muitos dos homens armados. Dois parentes de testemunhas foram mortos e um terceiro ficou ferido após ser baleado várias vezes. A perda de testemunhas trouxe questionamentos sobre o Programa de Proteção a Testemunhas das Filipinas, considerado muito carente de recursos. Quinsayas disse que foi convidada para escoltar testemunhas a caminho do julgamento, substituindo a proteção do Estado. Mary Grave Morales, cujo marido e irmã, ambos jornalistas, estavam entre as vítimas de Ampatuan em 2009, disse ao CPJ no ano passado: “Quando todos aqueles que testemunharam os crimes também estiverem mortos, o julgamento será inútil. A justiça não será feita.”

Os réus, vários deles membros do alto escalão do poderoso e rico clã Ampatuan, têm amplos recursos para evitar a justiça. Algumas famílias das vítimas, muitas das quais perderam o seu principal sustentáculo econômico, dizem ter sido abordadas com subornos e ameaças. A defesa mobilizada pelos acusados, por sua vez, vem protelando o caso há anos com táticas legais, explorando regras processuais que muitas pessoas sentem que precisam ser reformadas nas Filipinas. Em outros casos, sobretudo nos casos dos assassinatos dos jornalistas que faziam denúncias populares Marlene Esperat e Gerardo Ortega, esse tipo de manobra propiciou tempo e oportunidade para que os mandantes encontrassem uma maneira de escapar do julgamento. Para as testemunhas e familiares das vítimas, cada ano adicionado ao julgamento é mais um ano a viver sob intensa tensão psicológica e financeira ou medo.

Mas eles também têm receio de uma ameaça oposta: a de que o Estado possa estar agindo com demasiada pressa. Em fevereiro de 2014, a promotoria disse ao tribunal que “não estava inclinada” a apresentar mais provas contra os 28 réus que foram denunciados, e estava pronto para finalizar o caso contra eles. Por um lado, isso implicaria abrir processos contra os suspeitos, incluindo Andal Ampatuan Jr., acusado de liderar o ataque, levando-o a audiências de fiança a julgamento criminal. Mas significaria também limitar a gama de prova admitidas. “Preocupa-me que sob o pretexto de justiça célere, o que teremos, em vez disso, é uma justiça comprometida”, disse Quinsayas.

As deficiências da lei e da ordem pública ajudam os autores a escapar da justiça em outros países onde os jornalistas são alvo de agressões, entre eles o Paquistão, Nigéria e Honduras. No México, a corrupção generalizada entre aqueles encarregados da aplicação da lei, o judiciário e o sistema político resultou apenas em investigações superficiais em dezenas de casos em que jornalistas foram assassinados ou desapareceram durante a cobertura das atividades criminosas de cartéis de drogas. O uso da violência para eliminar ou intimidar qualquer um que fica no caminho da impunidade também está em jogo no México, sétimo país do mundo em número de casos não resolvidos de crimes que atingiram jornalistas de acordo com o Índice Global de Impunidade do CPJ. Em um caso desconcertante, tanto o investigador federal titular e seu substituto que trabalhavam no assassinato do repórter policial veterano Armando Rodríguez Carreón foram assassinados. Homens armados dispararam contra Rodríguez em seu carro, na frente de sua filha de 8 anos de idade, em novembro de 2008.

A batalha para resolver esses problemas sistêmicos não é fácil, mas estratégias têm surgido. O México aprovou recentemente uma legislação que permite às autoridades federais investigar os ataques contra jornalistas em vez da polícia local, mais susceptível de se tornar cúmplice ou ser influenciada pelos grupos criminosos que dominam suas áreas. Nas Filipinas, organizações de defesa da liberdade de expressão apresentaram conjuntamente recomendações ao Departamento de Justiça em 2010. Elas incluem: o fortalecimento do Programa de Proteção à Testemunha; formação de equipes de resposta com participação do governo, da mídia e representantes de ONGs para investigar assassinatos de jornalistas; e revisão das regras dos tribunais que deve, nas palavras de Melinda Quintos De Jesus, diretora do Centro para a Liberdade da Mídia e Responsabilidade, “raspar as cracas antigas de um sistema judicial que parece existir apenas para o benefício dos advogados”.

Vai levar tempo para que tais medidas, ainda que sejam integralmente aprovadas e aplicadas, venham a fazer a diferença. Nesse ínterim, o monitoramento local e internacional sobre o julgamento de Maguindanao deve ser mantido, disse Prima Quinsayas, que acrescentou: “Perdê-lo no radar público é ser derrotado pelos processos demorados, que é uma das características da cultura de impunidade nas Filipinas.”

Poucos países possuem mais ingredientes do que o Paquistão para promover um clima de impunidade. A nação e seus meios de comunicação sofrem habitualmente violência cometida pelos bem armados militantes extremistas e grupos políticos, juntamente com organizações criminosas. Sua política é turbulenta e suas instituições judiciais fracas. Com uma história de disputas entre a mídia e o governo, a vontade política pode ser facilmente questionada. Ataques mortais e que visam provocar danos significativos contra a mídia são frequentes. Pelo menos 23 jornalistas foram assassinados entre 2004 e 2013, e até este ano, o Paquistão tinha um registro irretocável de impunidade nesses casos.

Então veio a notícia no início de março 2014 de que o Tribunal Antiterrorismo Kandhkot condenou seis suspeitos do assassinato do popular apresentador de televisão Wali Khan Babar. Babar, um apresentador de notícias da Geo TV, foi assassinado a caminho do trabalho para casa, em Karachi, em 13 de janeiro de 2011. Quatro homens foram condenados à prisão perpétua; dois outros, a quem a polícia não tinha conseguido prender, foram condenados à morte in absentia. Mas a justiça está longe de ter sido feita. Além dos dois suspeitos que continuam foragidos, ninguém foi processado por ter ordenado o crime. Embora o caso representa uma espécie de vitória para os jornalistas paquistaneses, é uma vitória sombria. “Ao mesmo tempo, nós preferimos não ser parabenizados por ter perdido um jornalista”, Shahrukh Hasan, diretor do Grupo Jang, que é proprietário da Geo TV, disse ao CPJ durante uma visita à emissora em março deste ano.

Os motivos reais por trás do assassinato de Babar não foram revelados, mas vários suspeitos condenados no assassinato de Khan estão ligados ao movimento de Muttahida Qaumi, um partido político que exerce imenso poder em Karachi. Em um relatório especial do CPJ, em 2013, a jornalista Elizabeth Rubin constata a impunidade no Paquistão da violência cometida contra a imprensa, incluindo este caso, concluindo que o trabalho de Babar para a Geo o tinha colocado em conflito com o partido.

Os assassinos de Babar chegaram a limites impensáveis para se proteger, e o caminho para a justiça tem levado a choques sangrentos. Nos três anos que se passaram entre o assassinato e a condenação, pelo menos cinco pessoas ligadas à investigação e à repressão do crime foram assassinadas. Esses crimes incluíram um informante, encontrado morto em um saco duas semanas depois do assassinato, dois policiais que trabalharam no caso, o irmão de um chefe de polícia local, possivelmente atingido como um aviso, e uma testemunha ocular, alvejada a tiros dias antes de seu depoimento. Dois promotores que trabalharam no caso foram para o exílio devido a ameaças.

Em algum momento, o caso chamou a atenção do primeiro-ministro Nawaz Sharif, que assumiu o cargo após as eleições gerais em 2013. O ministro do Interior da Província de Sindh lembrou em uma reunião com o CPJ que o primeiro-ministro começou a fazer convocações para verificar o andamento do caso. Em setembro de 2013, o então Chefe de Justiça do Paquistão Iftikhar Muhammad Chaudhry criticou severamente as instituições encarregadas de aplicar a lei em Karachi, em uma audiência, exigindo um relatório sobre as suas falhas no caso Babar. Durante todo o tempo, a Geo TV, naquela época uma das maiores e mais populares emissoras do país, manteve os holofotes da mídia sobre o caso.

Grupos de defesa da liberdade de imprensa no Paquistão fizeram uma campanha vigorosa para chamar a atenção sobre os casos de Babar e de dezenas de outros jornalistas mortos no cumprimento do dever. A atenção internacional também foi mobilizada. No início de 2013, as Nações Unidas começaram a implementar o seu Plano de Ação sobre a Segurança dos Jornalistas e a Questão da Impunidade interinstitucional, que elegeu o Paquistão como um país foco. O plano, elaborado pela UNESCO, exorta os Estados a tomarem medidas para melhorar as investigações e procedimentos penais nos casos de assassinatos de jornalistas e, entre outras medidas, melhorar a segurança dos jornalistas.

A família de Babar também se recusou a deixar que as coisas ficassem por isso mesmo. Seu irmão, Murtaza Khan Babar, contratou advogados para auxiliar a acusação, mas as ameaças levaram dois deles a deixar o país. Outro foi assassinado. Ele gastou 1,5 milhões de rúpias paquistaneses (cerca de US$ 15.000 ou R$ 6,224,00), em um país onde o salário médio anual é de pouco mais de US$ 3.000 ou R$ 1.244,00. “Meu negócio foi prejudicado. Vendi minha casa”, lembrou o irmão de Babar, que também teme por sua própria segurança, enquanto alguns dos suspeitos permanecem livres.

Suas petições e a imensa pressão em torno desse tumultuado caso levaram a uma mudança do local do julgamento de Karachi para um tribunal antiterrorismo em Shikarpur, onde a poderosa rede de apoio ao acusado tinha menos alcance e influência. Tribunais antiterroristas aceleram o processo judicial e oferecem um ambiente mais protegido. Embora tardiamente para influenciar diretamente o caso Babar, a Assembleia Provincial de Sindh aprovou uma legislação para estabelecer um programa formal de proteção a testemunhas no final de 2013. O veredicto que se seguiu lançou as bases para o Paquistão reverter seu histórico de impunidade. “Agora, qualquer pessoa que tenha a intenção de matar jornalistas vai pensar 10 vezes”, disse Murtaza Khan Babar.

Os elementos por trás dessa condenação revelam as estratégias que podem ser eficazes no combate à impunidade. A transferência do local do julgamento para garantir um processo justo e uma maior proteção das testemunhas tem sido usado para garantir condenações em outros casos. Nas Filipinas, o Fundo de Liberdade para Jornalistas Filipinos, com a ajuda de promotores privados, solicitou com sucesso mudanças no local do julgamento dos acusados de matar Marlene Garcia-Esperat e outros casos que terminaram com condenação de suspeitos-chave. Uma intensa cobertura midiática pela TV Globo do Brasil após traficantes terem sequestrado e assassinado seu repórter Tim Lopes, em 2002, pressionando as autoridades para conseguir justiça completa, também galvanizou a mídia do Brasil para iniciar uma luta contra a impunidade que continua até hoje. Os sacrifícios e a determinação dos membros da família, como Murtaza Khan Babar e Myroslava Gongadze, são indispensáveis. Em primeiro lugar, o apoio das lideranças mais elevadas é o que permite que se faça ou não justiça.

A delegação do CPJ visitou o Paquistão em março de 2014, logo após o veredicto e abordou o caso Babar em reuniões com o primeiro-ministro Sharif e outros funcionários do governo. Todos eles concordaram que o processo ofereceu lições a serem aprendidas e uma oportunidade para o Paquistão passar de um comportamento reprovável para modelar nesta questão. Sharif assumiu vários compromissos durante a reunião que, se implementados, poderiam sustentar o impulso dado pelo julgamento. Eles incluem o estabelecimento de uma comissão conjunta de membros do governo e jornalistas para tratar dos contínuos ataques contra jornalistas e da impunidade; alteração dos locais de julgamento em outros casos; e a expansão de programas de proteção a testemunhas. O ministro da Informação do Paquistão, Pervaiz Rasheed, disse que o governo iria indicar os dois promotores especiais estaduais e federais para investigar crimes contra jornalistas.

Seria grosseiramente incorreto dizer que foi virada uma nova página no tocante à impunidade no Paquistão. O governo ainda não cumpriu essas promessas. A Justiça não tratou dos casos das testemunhas e promotores que foram mortos no curso do julgamento de Babar, e permanece sem dar respostas em outros assassinatos de jornalistas. Em muitos aspectos, a situação piorou no Paquistão desde o veredito e a visita do CPJ. Houve vários novos ataques, incluindo o assassinato do experiente âncora da Geo News Hamid Mir. E o governo tem assediado os meios de comunicação do Grupo Jang após suas afirmações de que o Serviço de Inteligência Interna do Paquistão perpetrou o ataque a Mir. Mas o caso de Babar oferece um vislumbre, ainda que breve, de um futuro em que a justiça é possível, mesmo nos ambientes mais hostis à imprensa.

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