Depois que o corpo do jornalista ambiental Dom Phillips foi encontrado no vale do Javari, no Amazonas, no dia 15 de junho de 2022, sua viúva, Alessandra Sampaio decidiu terminar o mais importante projeto do marido, o livro “Como Salvar a Amazônia.” Agora ela está contribuindo para preparar uma nova geração de lideranças indígenas a continuar sua luta para defender a floresta e ter uma educação de qualidade no território.
“Nunca tinha vivido uma perda tão impactante”, Sampaio, 54, contou ao CPJ em meio ao burburinho, ao calor tropical intenso e ao vai-e-vem de pessoas na área externa da COP30, no Parque da Cidade, em Belém, no Pará. Ex-estilista que dava aulas de costura usando resíduos para refugiadas africanas e venezuelanas, Sampaio participou de um painel na zona verde da COP, no dia 12 de novembro, sobre povos indígenas isolados e de recente contato, jornalismo ambiental e o caso Dom Phillips. Seu marido estava em viagem de trabalho ao vale do Javari quando foi assassinado junto com o indigenista Bruno Pereira.
O Comitê para a Proteção de Jornalistas e outras organizações de defesa da liberdade de imprensa trabalham para que esse crime seja devidamente julgado, lembrando que quase 80% dos crimes contra jornalistas em todo o mundo permanecem sem solução. Também cobram do governo brasileiro que jornalistas possam trabalhar de forma livre e segura, especialmente em regiões de alto risco como o Vale do Javari.
“É triste não ter a presença de Dom, pois tínhamos uma conexão muito forte”, disse.
No Instituto Dom Phillips, presidido por Sampaio, essa conexão segue viva pelo empoderamento de jovens lideranças indígenas por meio da educação — missão que ela diz ser crucial para seu “processo de cura”, acrescentando: “Não fico presa à questão do assassinato, embora queira justiça.” Nesta entrevista, Sampaio fala do luto por Phillips, da responsabilização dos assassinos e da importância de colocar os povos indígenas no centro do ativismo jornalístico e climático da Amazônia.
A entrevista foi editada para maior clareza e concisão.
Três anos após o assassinato de seu marido, Dom Phillips, houve alguma mudança em termos de proteção e segurança para as lideranças indígenas do vale do Javari?
Tenho ouvido relatos de que eles ainda se sentem ameaçados, pois não se pode assumir que uma rede criminosa seja facilmente desarticulada. Não acredito que o assassinato de Dom e Bruno tenha sido pontual, e sim fruto de um sistema criminoso que funciona na tríplice fronteira [entre Brasil, Peru e Colômbia].
Beatriz [Matos, antropóloga e viúva do indigenista Bruno Pereira], que virou uma grande amiga e irmã, me conta dos esforços feitos para proteger os defensores do território por meio do Ministério dos Povos Indígenas [onde trabalha como diretora do Departamento de Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato]. Sei que o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania também está envolvido, assim como o Ministério das Relações Exteriores [na mesa conjuntapara a aplicação das medidas cautelares da Comissão Interamericana de Direitos Humanos referentes ao caso]. É um processo que começou com essa tragédia, porque é inaceitável que aconteça novamente.
Como está a luta para responsabilizar os assassinos de Dom e Bruno?
Os executores e o mandante foram presos, mas o julgamento ainda não foi marcado. As famílias esperam por justiça. Costumo dizer que o tempo das famílias nunca é o tempo da justiça. Se de fato ficar provado que essas pessoas presas tiveram participação nos crimes, elas devem pagar por isso. Essa responsabilização traria segurança, até porque há pessoas no território que seguem sendo ameaçadas, pessoas da Univaja [União dos Povos Indígenas do Vale do Javari] que são meus amigos, uma família estendida. Essas ameaças provocam uma sensação ruim, pois me fazem reviver a perda do Dom.
Como cuidou da saúde física e mental após o trauma pela perda do Dom?
Reforcei a terapia que já fazia. As duas terapeutas que me atendem são maravilhosas e me ajudam a seguir. Preciso estar com a mente sã e o corpo são para poder continuar, porque há muito trabalho a ser feito.
Após lançar o Instituto Dom Phillips no ano passado, como tem sido o trabalho para engajar e educar as jovens lideranças indígenas?
Quando chegamos ao território, a primeira coisa foi entender quais eram as demandas. Conversamos com as lideranças mais velhas que falaram da preocupação com os jovens de se prepararem para entrar no movimento indígena. Conversamos com os jovens e entendemos a importância de levar a eles processos de formação educativa a fim de colaborar com o seu empoderamento. São jovens comunicadores que levam a informação do mundo para as comunidades da floresta e também jovens universitários que lutam pela educação indígena de qualidade no território. Eles veem muito à frente, a incidência deles é voltada para o futuro. Querem saber mais sobre a COP 30, a crise climática, as atribuições da Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas]. Estão muito antenados, não precisam de tutela e sim ser reconhecidos como protagonistas. O instituto colabora com o protagonismo que eles já têm e faz isso de forma online, dada a questão da segurança no território.
O que mudou no seu relacionamento com a comunidade indígena desde a criação do instituto?
Não tenho dúvida de que o instituto é parte da cura e um compromisso que aconteceu naturalmente. Ao me chamar de “parente”, os povos indígenas do Vale do Javari me proporcionam um acolhimento inimaginável, além de me trazer uma responsabilidade muito grande. Somos uma grande família lutando pela proteção da Amazônia e dos povos indígenas.
Como foi o processo para finalizar e publicar o livro de Dom?
Foi uma conquista quando o livro foi lançado este ano, pois corria-se o risco de ele não ser finalizado. O Dom escreveu da introdução ao quarto capítulo. Faltava desenvolver pelo menos seis capítulos, o que me deixou angustiada. Quando Dom e Bruno desapareceram, meu foco era que encontrassem os corpos. Depois que isso aconteceu, pensei: “Esse livro tem que ser finalizado”. Foi muito legal, porque jornalistas, amigos próximos, estavam pensando a mesma coisa e vieram conversar comigo. Montamos um time e o trabalho começou. Escolhemos jornalistas ou que entendiam muito sobre o tema Amazônia ou que entendiam muito sobre a proposta do livro. Foi um trabalho genial, com a liderança do Jonathan Watts e da Rebecca Carter, a agente literária do Dom. Lançamos no Reino Unido, nos Estados Unidos e no Brasil.

O que você diria a jovens jornalistas, especialmente jovens indígenas, que querem cobrir desafios climáticos e ambientais?
Escutei [na COP30] uma palestra de influenciadores indígenas que contou com vários nomes, incluindo a Txai Suruí [colunista da Folha de S.Paulo]. Eles disseram que você não precisa pensar muito e imaginar que estará fazendo uma produção de qualidade extrema, só precisa começar. Os jovens indígenas já sabem o que falar. A técnica, adquirem com a experiência, o tempo e as vivências. Por estar muito conectados com os mais velhos, têm a sabedoria ancestral. É importante que tenham a oportunidade de falar.
Que mensagem acha que Dom gostaria que as pessoas levassem de seu trabalho de conscientização sobre proteger a Amazônia?
É a mensagem de esperança que o próprio livro traz. É importante entender que os povos indígenas e as comunidades tradicionais têm que estar no centro da discussão sobre Amazônia e proteção do meio ambiente. Para nos engajarmos na proteção da Amazônia, precisamos consumir informação de qualidade. Assim criamos uma conexão afetiva com a floresta e os povos e entendemos a importância do meio ambiente e das pessoas que estão ali protegendo um bem para a humanidade inteira. Sem as florestas, não sobreviveremos. Será um caos climático, com eventos extremos, o encarecimento da comida, já que a produção agrícola será muito afetada, assim como o acesso à água e a geração de energia elétrica. Precisamos entender que somos parte de um sistema vivo. Somos a natureza, não somos separados. Se não fizermos nada, não podemos esperar que só os políticos atuem. Que todo mundo se engaje, porque é para todo mundo. Estamos aqui num único planeta.