A capacidade dos governos para armazenar dados transacionais e o conteúdo das comunicações representa uma ameaça única para jornalismo na era digital. Por Geoffrey King
No outono de 2013, a Agência de Segurança Nacional dos EUA começou discretamente a implantar seu Centro de Dados em Utah, uma instalação de 1,5 milhão de metros quadrados, destinada a armazenar e analisar a enorme quantidade de dados eletrônicos que a agência de espionagem capta no mundo inteiro. Constituída por quatro salas de dados e uma constelação de estruturas de apoio, a instalação inclui pelo menos 100 mil metros quadrados dos mais avançados sistemas de armazenamentos de dados do mundo. O projeto constitui uma colossal expansão da capacidade da NSA e representa uma enorme ameaça à liberdade de imprensa em todo o mundo.
O centro de dados é apenas o exemplo mais óbvio de um futuro em que os governos poderão não só coletar e analisar enormes quantidades de dados, mas também armazená-los por um tempo cada vez mais prolongado. O arquivamento de dados de vigilância representa uma extraordinária ameaça para o jornalismo na era digital, ainda mais considerando que os avanços tecnológicos permitem à NSA e a outras agências de inteligência armazenar indefinidamente não apenas os detalhes transacionais de todas as comunicações, como muitos especialistas acreditam já ser o caso, mas também enormes quantidades de conteúdo de telefonemas, textos e e-mails. Ao manter um registro de todos os detalhes das comunicações obtidas na sua varredura, e depois associando essas informações ao conteúdo, o governo dos EUA poderá recriar a pesquisa de um repórter, recompor a origem das informações, e até mesmo retroativamente escutar comunicações que de outra forma já teriam desaparecido para sempre. Em breve será possível descobrir fontes com tanta facilidade que não terá sentido qualquer promessa de confidencialidade feita por um jornalista; e se uma interação escapar do escrutínio da primeira vez, poderá ser reconstituída mais tarde.
Vigilância e persistente armazenamento de dados podem interferir no livre fluxo de informações, mesmo em países como os EUA, que têm proteções para a liberdade de imprensa. Tanto os jornalistas como as fontes vão saber que qualquer matéria que atraia a ira oficial poderá não só expô-los, mas também provocar debate público e retaliação. Tornar o armazenamento de informações em longo prazo rapidamente mais barato, vai permitir sua utilização por parte de regimes autoritários, cuja história de desrespeito à liberdade de imprensa mostra reduzida possibilidade de ser refreado.
Além de aumentar os danos causados pela vigilância generalizada, o armazenamento de dados designa outra singular possibilidade: cria um solo fértil para os sistemas de inteligência artificial, que no futuro podem levar a mecanismos de espionagem mais eficientes, capazes até mesmo de se antecipar. Com a evolução desses recursos, os governos serão capazes de detectar padrões de atividade terrorista ou atividade jornalística muito antes de ameaçarem seu poder. Se não forem controlados, os sistemas de vigilância podem não diferenciar os dois.
A NSA é notoriamente nebulosa, e muitas queixas são impossíveis de se confirmar. Os dois prédios principais da sede em Fort Meade, em Maryland — chamados OPS2A e OPS2B — são literalmente caixas-pretas de vidro esfumaçado, com visão unidirecional. Mais sugestiva do que qualquer ocultamento material da NSA e sobre o silêncio em torno de suas operações é uma piada bem conhecida na agência sobre o que representam as iniciais da NSA “Never Say Anything” [Nunca Divulgue Nada] e “No Such Agency” [Não Existe tal Agência]. Considerando esse sigilo, escrever sobre a agência, muitas vezes torna-se um exercício de cautelosas conjecturas. Os documentos vazados pelo ex-contratado da NSA, Edward Snowden, lançaram alguma luz sobre as atividades da agência. Para este relatório, o CPJ entrevistou repórteres veteranos de segurança nacional, um advogado contestando a constitucionalidade da vigilância da NSA e William Binney, que era considerado um dos melhores matemáticos e decifradores de código da NSA durante seus 30 anos trabalhando na agência.
Todos os especialistas entrevistados pelo CPJ disseram que achavam que a NSA tem como um de seus alvos de vigilância os jornalistas. Eles discordam no que tange ao fato dos jornalistas estarem sob maior ameaça que outras pessoas.
Binney, que se demitiu da NSA em 2001 em protesto contra as violações de privacidade em massa, que ele alega que a Agência cometeu após os atentados de 11 de setembro, acha que o governo vigia todos os repórteres. Ele contou ao CPJ que “eles mantêm um registro de todos eles, para que possam averiguar, investigar as pessoas para quem os repórteres ligam, que são as prováveis fontes de suas matérias, e coisas do gênero”. Jornalistas, observou Binney, são “um alvo muito menor e mais fácil” para espionar do que a população em geral e, em sua opinião, a NSA provavelmente tira proveito disto.
Por outro lado, o jornalista de segurança nacional, James Bamford, que o The New Yorker apelidou de “o Principal Comentarista da NSA”, disse ao CPJ que acha que certos jornalistas são examinados com mais rigor. “Se você escreve sobre a segurança nacional ou sobre a própria NSA”, disse, “eles consideram você, o jornalista, um perigo para a segurança nacional, e, dessa forma, eles justificam o que estão fazendo.”
Alex Abdo, um advogado do Sindicato Americano para Liberdades Civis, faz parte de uma equipe de advogados em litígio contra a NSA por violar os direitos de privacidade e liberdade de expressão, consagrados na Constituição dos EUA. Ele disse ao CPJ que acredita que “todos os repórteres tem razão de estar preocupados”, mas talvez por motivos diferentes. “Repórteres que trabalham para os maiores órgãos de imprensa provavelmente deveriam estar preocupados, em primeiro lugar, porque suas fontes desaparecerão depois de perceberem que não há como cobrir seu rastro” quando falarem com jornalistas do The New York Times, The Washington Post ou o Wall Street Journal. Para os jornalistas independentes, por outro lado, a preocupação principal é que “eles próprios serão apanhados no decorrer de suas matérias, porque não usufruem de algumas das proteções institucionais dos jornalistas que trabalham em empresas maiores”.
Questionada sobre a vigilância dos jornalistas, a NSA afirmou que a principal função de sua coleta de dados é proteger os EUA contra ameaças estrangeiras. A porta-voz Vanee’ Vines, ela mesma, ex-jornalista investigativa, disse ao CPJ, “a NSA concentra-se em descobrir e desenvolver investigações sobre alvos válidos de inteligência estrangeira a fim de proteger a nação e os seus interesses de ameaças como o terrorismo e a proliferação de armas de destruição em massa.” Vines também destaca uma declaração no site do Tumblr da NSA que afirma, “a NSA realiza todas as suas atividades de acordo com as leis, regulamentos e políticas em vigor — e quem disser o contrário, presta um grave desserviço à nação, seus aliados e parceiros, e aos homens e mulheres que constituem a Agência de Segurança Nacional”. (Agentes de investigações enganaram o público no passado sobre as atividades da NSA. Numa audiência do Comitê de Investigações do Senado, em março de 2013, o senador Ron Wyden perguntou ao Diretor da Inteligência Nacional, James Clapper, “a NSA coleta qualquer tipo de dados de milhões ou centenas de milhões de americanos?” Clapper disse, “não, senhor… não deliberadamente.” Após as revelações de Snowden sobre a coleta em massa de registros de chamadas telefônicas de americanos e enfrentando acusações de perjúrio de membros do Congresso, Clapper enviou uma carta à Presidente da Comissão, senadora Dianne Feinstein, pedindo desculpas pelas suas declarações “claramente errôneas” sob juramento.)
Russ Tice, que passou quase 20 anos trabalhando em diversas agências do governo, afirma ter conhecimento em primeira mão sobre o direcionamento da vigilância para jornalistas. Falando a Keith Olbermann, em 2009, Tice alegou que, como analista da NSA, ele testemunhou um programa da agência que recolhia informações sobre órgãos da imprensa e jornalistas dos EUA. Ele não deu mais detalhes. E a NSA pode não ser a única agência de investigações dos EUA a monitorar jornalistas. Em 2008, Adrienne Kinne, sargento aposentada do exército, disse a Amy Goodman e outros jornalistas do Democracy Now! que, quando trabalhava no serviço militar de informações, ela escutava conversas telefônicas entre jornalistas no Iraque e seus cônjuges e editores, apesar de seus números poderem ser excluídos da interceptação, uma vez identificadas as identidades.
Além destas alegações, a revista alemã Der Spiegel relatou, em agosto de 2013, que analisou documentos da NSA, fornecidos por Snowden, mostrando que a agência invadiu um sistema de comunicação interno “especialmente protegido” da emissora Al-Jazeera, baseada no Qatar. Segundo o Der Spiegel, os documentos da NSA qualificavam a operação como “um notável sucesso.” A NSA não fez qualquer comentário público sobre a reportagem.
Uma jornalista, para quem a vigilância aparentemente teve consequências diretas e recentes, é a cinegrafista premiada Laura Poitras, cujos filmes mostram a política americana na era pós 11 de setembro e que, com Glenn Greenwald, documentou as revelações de Snowden sobre a NSA no Guardian. Poitras diz que foi detida para interrogatório na fronteira dos Estados Unidos mais de 40 vezes, entre 2006 e 2012; Snowden contou a Peter Maass do The New York Times Magazine, que, por causa de suas reportagens anteriores, Poitras estava “se tornando alvo dos próprios programas mencionados nas divulgações recentes”.
Em outubro de 2013 o chefe da NSA, general Keith Alexander, comentava que a agência não tinha paciência com jornalistas que se intrometiam em suas atividades. “Acho errado que jornalistas tenham posse de todos esses documentos, 50.000 ou o quanto tiverem, e os estejam vendendo ou distribuindo – você sabe, isso não faz sentido”, ele disse no blog do Departamento de Defesa “Armed with Science” [Armado com Ciência], segundo informou Politico. “Precisamos descobrir um meio de acabar com isso. Eu não sei como fazer isso, isso é coisa para os tribunais e para os formuladores de políticas, mas do meu ponto de vista é errado, e permitir que isso continue está errado.”
A maioria dos jornalistas talvez não acabe na mira da NSA. Mas todos os jornalistas precisam reconhecer que a agência está coletando um número enorme de informações, que vai continuar a fazer isso, e que, uma vez coletadas, estas informações são guardadas e podem ser amplamente usadas. Portanto, mesmo que um repórter de cidade pequena que escreve sobre uma feira estadual possa não estar sendo tão vigiado quanto um repórter de segurança nacional de uma cidade grande, que escreve sobre assuntos do Estado, ambos são vulneráveis — especialmente quando os dados de vigilância são indexados e armazenados.
Atrás dos muros do Centro de Dados em Utah, de cor cinza como de um encouraçado, ficam os dispositivos que compõem o que Lonny Anderson, o Chefe de Informações da NSA, descreve como a “nuvem” da NSA. Embora sejam variadas as opiniões de especialistas sobre a capacidade de armazenamento de dados da instalação, até mesmo as estimativas mais conservadoras são espantosas. Na parte de baixo, acredita-se que o Centro de Dados de Utah possa armazenar entre 3 e 12 exabytes de dados. (Um exabyte é o equivalente a um bilhão de gigabytes.) Para colocar isto em perspectiva, em 2003, pesquisadores da Universidade da Califórnia, em Berkeley, avaliaram que a quantidade de informações gerada por todas as conversas desde o alvorecer da humanidade seria de cerca de 5 exabytes. Teóricos mais ousados, como o ex-analista da NSA, Binney, dizem que as instalações de Utah teriam uma capacidade bruta de armazenamento de cerca de um zetabyte, ou 1.024 exabytes.
Binney disse ao CPJ que a NSA está mapeando a vida das pessoas, em especial seus contatos sociais e de negócios, por meio da trilha do atendedor digital de “metadados”, cotidianamente. Embora geralmente considerados capazes de excluir o conteúdo de comunicações e muitas vezes transacionais ou descritivos por natureza, os metadados podem ser perfeitamente detalhados, como evidenciado por um despacho secreto do fechadíssimo Tribunal de Vigilância de Informações Estrangeiras dos Estados Unidos (conhecido como o Tribunal FISA -[U.S. Foreign Intelligence Surveillance Court]) vazado por Snowden para o Guardian. De acordo com o despacho, a NSA recolhe os números, dados de localização, informações exclusivas de identificação, a hora e a duração dos telefonemas, de todos os envolvidos. Conforme relatado pelo The New York Times, o Tribunal FISA também autorizou e tornou a autorizar a coleta e análise de todos os registros de chamadas americanas, independentemente de qualquer ligação com agente estrangeiro.
Embora seja impossível saber de tudo o que a NSA coleta, os tribunais estabeleceram, em outros contextos, que informações muitas vezes consideradas metadados não estão limitadas a chamadas telefônicas e podem incluir transações bancárias, internet, e-mail, e outros registros. Embora as decisões jurídicas quanto às implicações de privacidade no que se refere à vigilância de metadados possam estar mudando aos poucos, depois que os juízes começaram a reconhecer seu poder de abrir a vida das pessoas ao escrutínio, hoje tais dados continuam desprotegidos, em grande parte devido à Quarta Emenda Constitucional dos EUA — o que significa que os jornalistas americanos ainda não têm uma “expectativa razoável de privacidade” para grande quantidade de suas informações.
As informações recolhidas com base no acúmulo dos registos de metadados podem construir uma imagem bastante íntima da vida de alguém. Segundo escreveu Bruce Schneier, especialista em segurança informática, em seu blog em setembro de 2013, a análise de metadados é equivalente a contratar um detetive particular para espionar as atividades e ligações de uma pessoa. “Pormenores do que a pessoa fez: onde foi, com quem falou, para onde olhou, o que comprou — como passou o dia,” escreveu Schneier. “Isso tudo são metadados”.
A vigilância de metadados é especialmente perigosa para os jornalistas, porque significa que o governo pode identificar rapidamente as fontes. Bamford disse: “É sempre perigoso quando o governo tem acesso às comunicações dos jornalistas, porque o que os jornalistas garantem às fontes é a confidencialidade, e se não houver confidencialidade do governo, isso vai inibir a cooperação das fontes no futuro.” Isso tem um “efeito muito grave” sobre o jornalismo investigativo, ele disse ao CPJ. “Se eles são capazes de conhecer todos os números chamados, eles podem muito bem conhecer o tipo de matéria que você está fazendo, mesmo sem obter o conteúdo. Eles serão capazes de saber a natureza da matéria, e quem são as suas fontes.”
Metadados deixam um rastro digital excepcionalmente pequeno que esconde a ingerência. De acordo com Binney, ”você poderia construir um gráfico para telefones e e-mails e transações bancárias e enviar o gráfico de metadados agregados para um domínio e manter todas essas informações num cômodo de 3 por 6 metros. E fazer isso para o mundo todo e mantê-lo indexado por quantos anos quiser”. (Um memorando de janeiro de 2011 da NSA obtido pelo The New York Times confirma a existência de tal análise gráfica em larga escala).
Diante dessa realidade técnica, disse Binney, é claro que a NSA não montou as instalações em Utah apenas para dados transacionais. Quando perguntado por que a agência precisa de todo esse espaço, Binney disse: “significa conteúdo das comunicações, não apenas metadados. Eles estão criando cada vez mais espaço de armazenamento, porque estão coletando cada vez mais”. Ele disse que a NSA vai “tirar tudo” das linhas de comunicação “e armazenar” dados de meio milhão ou um milhão de pessoas escolhidas como alvos. De acordo com Binney, as informações de conteúdo serão, então, indexadas ao gráfico de vidas e redes sociais. A agência pode, então, consultar uma linha do tempo das relações de uma pessoa durante um período e “ir direto ao conteúdo” indexado de cada evento. Binney avalia que a NSA tem conteúdo e metadados já há uma dezena de anos, e que isso só vai aumentar com o tempo.
Até que ponto a NSA pode legitimamente coletar, armazenar e divulgar o conteúdo das comunicações sobre pessoas dos EUA está mais estritamente restrito pela Quarta Emenda, e também por estatutos como a Lei de Emendas da FISA de 2008 e outras regulamentações a respeito do que são metadados. No entanto, existem inúmeras maneiras de a NSA coletar o conteúdo das comunicações de jornalistas americanos. O New York Times relatou em agosto de 2013 que a NSA está copiando e pesquisando o conteúdo de grande quantidade de comunicações transfronteiriças dos americanos, com a finalidade de descobrir até mesmo menções de pequenos detalhes — um endereço de e-mail, por exemplo, ou um apelido — referentes a um estrangeiro sob vigilância.
Além disso, de acordo com as normas vigentes, comunicações de americanos acessadas por acaso podem ser retidas por até seis anos para analisar se contêm informações de inteligência estrangeira e/ou provas de um crime, de acordo com documentos recentemente liberados e reportagens do The Washington Poste The Guardian. Isso vale até mesmo para comunicações que se revelaram ter sido exclusivamente domésticas por natureza. (De acordo com o The New York Times, um documento de informação interna de 2010 da Assessoria Jurídica da NSA mencionou que a agência foi autorizada a coletar e armazenar o tráfego bruto de comunicações de cidadãos e residentes dos Estados Unidos, incluindo tanto metadados como conteúdo, por até cinco anos on-line e por 10 anos para “pesquisas históricas”. Comunicações criptografadas podem ser mantidas indefinidamente, revelam os documentos vazados para o Guardian.) De acordo com um relatório do Centro Brennan para a Justiça da Faculdade de Direito da Universidade de Nova Iorque, a NSA também pode compartilhar informações com base em comunicações estrangeiras de norte-americanos acessadas por acaso, e, sob certas circunstâncias, as próprias “comunicações não-subestimadas”, com a Agência Central de Inteligência (CIA), o Federal Bureau of Investigation (FBI), e até mesmo governos estrangeiros. Além disso, informações sobre americanos acessadas por acaso em comunicações domésticas podem ser compartilhadas com o FBI.
Embora a quantidade de conteúdo armazenado depois dessa coleta não possa ser estabelecida com precisão, algumas informações vieram à tona após os atentados de abril de 2013, ocorrido durante a Maratona de Boston, que poderiam esclarecer o alcance da vigilância baseada em conteúdo dos cidadãos e residentes americanos. Em entrevista à CNN, o ex-agente de contraterrorismo do FBI, Tim Clemente, sugeriu que “as chamadas telefônicas, até mesmo domésticas, estão sendo gravadas em massa e podem ser reproduzidas quando necessário. “Todo esse material está sendo capturado enquanto falamos, quer saibamos ou gostemos ou não,” ele disse, observando mais tarde que “existe um meio de verificar as comunicações digitais passadas” e que “nenhuma comunicação digital é segura”.
O fundador do Internet Archive, Brewster Kahle, proponente de uma das estimativas mais cuidadosas sobre a capacidade de armazenamento do Centro de Dados de Utah, postou uma planilha em junho de 2013, estimando que se a NSA gravasse e armazenasse todas as chamadas telefônicas dos Estados Unidos, tanto estrangeiras como nacionais, isto custaria apenas 27 milhões dólares por ano.
Enquanto o governo armazenar mais e mais dados, vai ser quase impossível aos jornalistas manter a confidencialidade das fontes. “O problema é que, quanto mais dados se coletam, maior fica a capacidade de perscrutar a vida de alguém,” disse Binney. ”E obtém-se uma imagem bem mais nítida da vida eletrônica dessa pessoa. Portanto, capturando isso e conseguindo coletar todos esses dados e correlacioná-los obtém-se uma imagem bem mais clara da vida de uma pessoa. E isso está sendo aperfeiçoado com o armazenamento.”
Estes avanços ilustram porque os atuais recursos do Data Center de Utah estão longe de ser o fim da história para os jornalistas, quer nos EUA ou no exterior. Segundo comentou o diretor da NSA para instalações e logística, Harvey Davis, para a The Salt Lake Tribune, “Sempre construo tudo de maneira que possa ser expandido.” E além das instalações em Utah, a NSA armazena dados no Havaí, Colorado, Texas, Geórgia e Maryland. Também é possível que a Agência tenha desenvolvido um hardware secreto personalizado, algoritmos de compressão de dados privados ou outras técnicas de aumento da eficiência, que iriam expandir a quantidade de dados brutos que podem ser gravados.
Os perigos são ainda maiores para os jornalistas não americanos. “Para quem não for cidadão americano, ou não esteja dentro do território dos Estados Unidos não existe qualquer proteção,” disse Bamford. Se um jornalista britânico, francês ou alemão escrever “uma matéria investigativa sobre algo envolvendo os EUA, algum crime de guerra cometido por alguém nos EUA”, a NSA, ele disse, “pode fazer o que quiser para descobrir as fontes.”
Abdo, da ACLU, concorda. “Até mesmo um repórter convencional no exterior tem um tipo diferente de preocupação à de um repórter comum nos Estados Unidos,” ele disse. “Eu ficaria surpreso, por exemplo, se a redação do Guardian na Inglaterra não estivesse sob considerável vigilância da NSA.” Os comentários de Abdo foram feitos depois que o editor do Guardian, Alan Rusbridger, revelou em agosto que agentes de segurança da Sede de Comunicações do Governo [Government Communications Headquarters – GCHQ] — versão britânica da NSA — supervisionou a destruição de discos rígidos de computador no Guardian numa tentativa de impedir que o jornal continuasse a divulgar mais documentos de Snowden. (A tentativa do GCHQ acabou sendo inútil, porque o Guardian estabeleceu uma parceria com o The New York Times e com o grupo jornalístico sem fins lucrativos ProPublica, que, na qualidade de organizações americanas, gozam de consideráveis proteções legais quanto à censura prévia, segundo a Constituição dos EUA.)
Citando a Constituição, o veterano repórter Peter Maass se rebela. “Por acaso me preocupa saber que o governo pode armazenar e recuperar material, enquanto que, no passado, ele precisaria ter mandados judiciais específicos, a fim de escutar e armazenar meus telefonemas? Sim…”, ele contou ao CPJ. “Esta é a razão pela qual todos nós estamos escrevendo essas matérias – e porque vemos problemas com o que o governo está fazendo. “Em última análise, Maass vê as atividades da NSA como uma oportunidade de instruir o público.” Quanto mais o governo fizer isso, mais problemas estarão criando para eles mesmos, e jornalistas, como eu, irão fundo a 110 por cento, porque são questionamentos constitucionais fundamentais”, disse ele. “Parte de mim diz: manda ver.”
Maass reconhece, no entanto, que, da mesma maneira que os EUA não têm complacência ao lidar com os jornalistas estrangeiros, outros protagonistas podem querer lidar com os americanos de modo igual. “A NSA e o governo dos EUA não são a única ameaça” ao trabalho dos jornalistas americanos, ele observa. “O governo russo está interessado e o governo britânico está interessado, interesses privados estão interessados,” ele disse. “Então temos de estar conscientes disso”.
Em breve, os avanços na tecnologia permitirão que qualquer governo desenvolva capacidade de vigilância e armazenamento em níveis sem precedentes. De acordo com um relatório de 2011 da Brookings Institution, os custos de armazenamento de dados têm diminuído por um fator aproximado de 10 a cada quatro anos nas últimas três décadas. Em 1984, um gigabyte de armazenamento custava US$ 85.000 em dólares; em 2011, um gigabyte custava 5 centavos, de acordo com o estudo. Com base nestes números, em 2011, teria custado à Síria — que em 2012-13 foi o quarto maior exportador de jornalistas fugindo por suas vidas — apenas cerca de US$ 2,5 milhões para gravar todos os telefonemas feitos por seus cidadãos. Em 2016 esse número poderia cair para US$ 250.000 e, em 2020, para US$ 25.000.
Enquanto os especialistas debatem os pormenores, jornalistas ativos são obrigados a examinar seus próprios métodos. Ali Winston, um premiado repórter investigativo freelance baseado na Área da Baía de San Francisco, contou ao CPJ que a dupla ameaça generalizada de armazenamento de dados e vigilância “me fez repensar minha própria privacidade. Fiquei consciente de como lidar com as minhas fontes, e tomei consciência de que não quero que as coisas se voltem contra as minhas fontes.”
Winston, que se formou em 2010 na Escola de Pós-Graduação de Jornalismo da Universidade de Berkeley, disse que tentou reduzir o acesso indesejado a suas comunicações eletrônicas durante anos, usando inclusive o software Tor, que torna anônimas as mensagens, e adotou novas medidas de segurança considerando as recentes revelações sobre vigilância. Ele cita como momento decisivo a revelação de 2005 de James Risen e Eric Lichtblau no The New York Times, sobre o programa inicial da NSA de escutas sem mandado. “Comecei a me informar, lendo os livros de James Bamford, lendo o jornal, lendo as matérias anteriores,” sobre o assunto atividades de vigilância, contou Winston ao CPJ. “Existe uma lógica intrínseca em sistemas de vigilância no que diz respeito à tendência contínua de se expandir,” ele disse. “Não existem controles naturais sobre a vigilância. Eles vão continuar a coletar informações até que sejam impedidos.”
Por mais perigosos que sejam os recursos de armazenamento em expansão da NSA para o jornalismo, a tendência implica uma perspectiva ainda mais sombria. O crescimento da coleta de dados e armazenamento fornece um campo de treinamento para sistemas de inteligência artificial projetados para esquadrinhar informações eficientemente a partir de um vasto mar de dados. “É basicamente uma mina de ouro para este tipo de processo,” disse Binney ao CPJ sobre os bancos de dados. “Eles precisam de um algoritmo automatizado para percorrer e descobrir o que é importante.” De acordo com Binney, o objetivo final é saber prognosticar. “Eles querem chegar ao ponto de prever intenções e possíveis ameaças,” disse ele.
Bamford escreveu sobre atividades anteriores de coleta de dados em seu livro de 2008, The Shadow Factory [A Fábrica de Sombras]. Estas atividades incluíam um projeto piloto de 2004, que usava informações extraídas de reportagens para construir um cérebro computadorizado capaz de predizer acontecimentos. Como Bamford escreveu: “Uma vez instalado e em funcionamento, o banco de dados de jornais antigos poderia ser rapidamente expandido para incluir um mar interior de informações pessoais sugadas pelas mangueiras da agência, sem mandado… Sem ser regulamentado, eles poderiam, através desse banco, determinar quais americanos representam um possível risco de segurança ou que sejam simpatizantes de uma causa.” Como Bamford informou, o projeto, ainda em andamento pelo menos até 2009, era incômodo o suficiente a ponto de um pesquisador não identificado se demitir por motivos éticos.
Se a NSA conseguisse desenvolver um sistema que pudesse atribuir ao público automaticamente um índice de ameaça, quase certamente seria dada uma atenção extra aos jornalistas. Até mesmo os jornalistas não controlados por causa de seu trabalho estão correndo risco. Como Cynthia Wong da Human Rights Watch observou em uma análise publicada no site da organização em agosto de 2013, os jornalistas estão entre os relativamente poucos usuários regulares de tecnologias de proteção da privacidade. Isso por si só, Bamford disse ao CPJ, é suficiente para o governo ter os jornalistas como alvo preferencial. “Eu não uso criptografia”, disse ele. ”Primeiro, chama a atenção, e depois, dá [à NSA] mais um motivo para tentar e quebrar o código.” (Pelo menos um especialista discorda: Snowden disse ao The New York Times Magazine que “a comunicação entre jornalista e sua fonte, sem criptografia, é imperdoavelmente imprudente.”)
Ao automatizar processos, a NSA está reduzindo os custos de oportunidade da vigilância. Por maiores que sejam as possibilidades, em curto prazo a automação torna tais processos mais inteligentes e também menos inteligentes. “A NSA está coletando todos os registros telefônicos, portanto, sempre que você atender ao telefone, a NSA registra,” disse Bamford. “Existem máquinas fazendo essas conexões, e elas podem não ter nenhuma base racional.” Uma pessoa que quiser chegar a uma fonte controversa para obter informações pode acabar pagando por isso, mais tarde, ele disse. “Tudo que se vê é que existe uma ligação entre um alvo e um cidadão dos EUA, e agora esse cidadão se torna um suspeito.”
Binney concorda. “Só porque você encomenda uma pizza e eu encomendo uma pizza com o mesmo entregador, isso não significa que existe uma relação entre nós,” ele disse. “Então não há nenhuma razão para nos reunir nesse grupo com base numa encomenda de pizza.”
Disse Bamford: “a NSA está acumulando poder e está acumulando mais recursos e mais escutas, e mais tecnologias invasivas.” E acrescentou, “ao mesmo tempo, eles iludem os débeis órgãos que deveriam ser os mecanismos de supervisão — o Congresso e o Tribunal FISA. Eu acho que é uma situação muito preocupante, não só para os jornalistas, mas para qualquer um.”
As revelações sobre vigilância mudaram a forma como os jornalistas precisam considerar a segurança do produto de seu trabalho, as suas fontes e a si mesmos. Jornalistas cautelosos que quiserem evitar a realização de uma pesquisa minuciosa para si ou para suas fontes terão que adaptar o seu comportamento, seja evitando o contato com as fontes ou deixando de usar tecnologias de proteção de privacidade como a criptografia. Tais mudanças prejudicam a capacidade dos jornalistas de reunir e divulgar informações livremente.
Independentemente dos programas da NSA estarem tão cuidadosamente direcionados como afirmam, o nefasto sigilo e o grande poder da agência lançaram uma enorme sombra sobre a liberdade de imprensa no mundo inteiro. Quando até mesmo uma sofisticada autoajuda digital é meramente uma solução imperfeita, o único e verdadeiro jeito é forçar a transparência através de reportagens cada vez mais contundentes, porque, como escreveu o juiz do Supremo Tribunal de Justiça, Louis Brandeis, há 100 anos: “a luz do sol é sabidamente o melhor dos desinfetantes.”
Geoffrey King, Coordenador de Defesa da Internet do CPJ, trabalha para proteger os direitos digitais de jornalistas em todo o mundo. Advogado Constitucional por formação, King, estabelecido em San Francisco, também ministra cursos na Universidade de Berkeley sobre legislação de privacidade digital e sobre as relações entre a mídia e mudança social.