Nova York, 30 de julho de 2003 — O Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ) condena a recente sentença do Tribunal Supremo de Justiça venezuelano que ratificou várias disposições do Código Penal relativas ao desacato e aos delitos de difamação e injúria.
No atual clima político, que permanece tenso apesar da diminuição da violência e de um recente acordo subscrito pelo governo e pela oposição em apoio a uma saída pacífica para a crise política, muitos integrantes da imprensa venezuelana, que se opuseram vigorosamente ao Presidente Hugo Chávez Frias, temem que a sentença judicial lhes restrinja a capacidade de emitir críticas contra o governo.
Em 15 de julho, a Comissão Constitucional do Supremo Tribunal de Justiça rechaçou um recurso que sustentava que vários artigos do Código Penal venezuelano eram inconstitucionais. Rafael Chavero Gazdik, advogado que tem escrito sobre temas constitucionais, apresentou uma ação de nulidade por inconstitucionalidade em março de 2001, que argumentava que os artigos 141, 148 a 152, 223 a 227, 444 a 447 e 450 do Código Penal eram contrários à Constituição venezuelana e às obrigações internacionais contraídas pela Venezuela conforme o Artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que garante o direito a “buscar, receber e difundir informações e idéias”. (Na Venezuela, qualquer cidadão pode recorrer aos tribunais para exigir a nulidade de uma lei por motivos de inconstitucionalidade.)
Os artigos 148 a 152 e 223 a 227 do Código Penal venezuelano compreendem as disposições sobre desacato, que sancionam penalmente as expressões ofensivas dirigidas a funcionários públicos e instituições do Estado; os artigos 444 a 447 e 450 tipificam os delitos de difamação e injúria; e o artigo 141 estabelece sanções penais para todas as pessoas que destruam a bandeira venezuelana ou outro emblema nacional.
Tomando como fundamento o “Informe sobre a compatibilidade entre as leis de desacato e a Convenção Americana de Direitos Humanos”, publicado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em 1994, que sustenta que as leis de desacato contrariam o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos porquê reprimem a liberdade de expressão, Chavero argumentou que como país membro da Organização dos Estados Americanos (OEA), a Venezuela devia derrubar as disposições sobre desacato e reformá-las com o objetivo de adequá-las às normas internacionais. Em sua ação, Chavero também solicitou ao Tribunal Supremo de Justiça que declarasse a nulidade das disposições que tipificam o delito de difamação ou as reformasse mediante a aplicação do padrão de “real malícia”, no caso em que a pessoa ofendida fosse um funcionário público ou pessoa pública. (O padrão de “real malícia”, articulado pela Corte Suprema Norte-americana no caso de 1964 The New York Times Co. v. Sullivan, exige que a parte demandante prove não só que a expressão ou publicação ofensiva é falsa, como também que a parte demandada tinha pleno conhecimento de que a expressão ou publicação era falsa e atuou com manifesta negligência ao difundi-la).
Apesar da sentença do magistrado do Tribunal Supremo, Jesús Eduardo Cabrera Romero, ter modificado ligeiramente o enunciado dos artigos 223, 224, 225 e 226, rechaçou os argumentos de Chavero. Explicando sua oposição a anulação das leis de desacato, o magistrado assinalou que não deveria se permitir a poderosos grupos políticos e de poder econômico privado, dentro de uma sociedade, que expressem pensamentos e idéias que busquem “debilitar instituições do Estado, para fins próprios ou alheios”. Além disso, Cabrera abordou a possibilidade de que “tal debilitação e até paralisia das instituições… se acelere mediante ataques persistentes, grosseiros, injuriosos, desmedidos e montados sobre falácias, contra os entes que conformam o tecido institucional do país”.
Além disso, a sentença declarou que as leis venezuelanas garantem os direitos humanos e não são incompatíveis com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, e destacou que os artigos 57 e 58 da Constituição venezuelana consagram o direito à informação e à liberdade de expressão e concedem maior proteção que a outorgada em conformidade com o artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Mesmo assim, a sentença especificou que as recomendações emitidas pela CIDH no informe de 1994 não eram vinculantes do ponto de vista jurídico.
Pouco depois da sentença, Eduardo Bertoni, Relator Especial para a Liberdade de Expressão da CIDH, distribuiu um comunicado no qual lamentava a decisão do Tribunal Supremo de Justiça venezuelano. Organizações internacionais de direitos humanos como a Human Rights Watch e organizações venezuelanas como o Programa Venezuelano de Educação-Ação em Direitos Humanos (Provea) também criticaram a sentença.
Os organismos internacionais de direitos humanos reconheceram que as atividades dos funcionários públicos estão sujeitas a uma maior fiscalização, e que estes não devem gozar de maior proteção que o restante da sociedade. A Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão da CIDH, aprovada em outubro de 2000, expressa que “os funcionários públicos estão sujeitos a um maior escrutínio por parte da sociedade. As leis que penalizam a expressão ofensiva dirigida a funcionários públicos geralmente conhecidas como ‘leis de desacato’ atentam contra a liberdade de expressão e o direito à informação”.
A Declaração de Princípios ressalta, também, que “a proteção da reputação deve estar garantida somente através de sanções civis, nos casos em que a pessoa ofendida seja um funcionário público ou pessoa pública ou particular que se tenha envolvido voluntariamente em assuntos de interesse público”. Apesar da Declaração de Princípios da CIDH não ser um documento vinculante, constitui a interpretação da CIDH a respeito das normas internacionais vigentes em matéria de liberdade de expressão.