O escopo da vigilância digital da Agência Nacional de Segurança
levanta dúvidas sobre o compromisso dos EUA para
a liberdade de expressão online. Por Joel Simon

Manifestantes marcham em frente ao Capitólio dos EUA, em Washington, em 26 de outubro de 2013 para exigir que o Congresso investigue os programas de vigilância em massa da NSA. (AP / Jose Luis Magana).

 

Como a espionagem dos Estados Unidos fortalece o controle da China

Por Joel Simon

No seu estilo tipicamente fulminante, a edição em inglês do jornal chinês People’s Daily proclamou em um editorial de agosto de 2012 que os Estados Unidos devem renunciar ao controle da Internet. “A Internet tornou-se um dos recursos mais importantes do mundo em apenas algumas décadas, mas o mecanismo de governança para um recurso internacional tão importante ainda é dominado por uma organização do setor privado e um único país”, observou o jornal.

Manifestantes marcham em frente ao Capitólio dos EUA, em Washington, em 26 de outubro de 2013 para exigir que o Congresso investigue os programas de vigilância em massa da NSA. (AP / Jose Luis Magana).

A China não está sozinha nesse ponto de vista. Uma coalizão de nações que impõem restrições à Internet – incluindo Rússia, Irã, Arábia Saudita e países da África e Oriente Médio – formou uma coalizão internacional que pede que as Nações Unidas assumam a governança da Internet.

O argumento chinês de que a estrutura da Internet serve aos “interesses hegemônicos” dos Estados Unidos foi visto por muito tempo pela comunidade internacional como “cínico e hipócrita”, disse Dan Gilmor, autor e especialista em assuntos relativos à Internet, dado o fato de que a política norte-americana tem apoiado e promovido a liberdade de expressão online, enquanto a China construiu um sistema sólido e sofisticado de controle da Internet.

Mas as crescentes revelações sobre o alcance da espionagem digital conduzida pela Agência de Segurança Nacional (NSA, sigla em inglês) levantaram dúvidas sobre o compromisso dos Estados Unidos. Os documentos vazados pelo ex-contratado da NSA Edward Snowden mostram que alguns dos programas de espionagem dos EUA operaram com o apoio técnico de empresas de tecnologia sob a jurisdição norte-americana. A NSA aproveitou-se do fato de que quase todas as comunicações online passam por servidores e switches baseados nos EUA para aspirar uma vasta parte da comunicação global. A agência estabeleceu como alvo especificamente governos, incluindo aliados como o Brasil, cuja presidente, Dilma Rousseff, ofendeu-se profundamente com a invasão de sua correspondência pessoal.

Ao utilizar sua vantagem tecnológica e controle indireto sobre a Internet para conduzir uma operação de vigilância global em escala sem precedentes, disse Gilmor ao CPJ, “os EUA abusaram de sua posição, entregando aos regimes repressivos muita munição para que se fechem ainda mais”.

A China defende há tempos que a União Internacional de Telecomunicações (ITU, sigla em inglês), administrada pelas Nações Unidas, deve assumir a autoridade para estabelecer normas técnicas, o que atualmente cabe à ICANN, uma entidade semiprivada com sede em Los Angeles, que opera sob licença do Departamento de Comércio dos EUA. O editorial do People’s Diary tinha a intenção de compor o cenário para a última reunião da ITU, que ocorreu em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, em dezembro de 2012. Na reunião, a coalizão de países africanos e do Oriente Médio apresentou um tratado para trazer a governança da Internet para o controle da ITU.

Os EUA e as nações europeias trabalharam febrilmente contra a proposta e, no fim, mais de cinquenta países, incluindo todos os membros elegíveis da União Europeia, se recusaram a assiná-la. No entanto, a coligação EUA/UE tem sido pressionada de maneira profunda pelas revelações de Snowden. Os europeus, que dão muito mais valor à privacidade, ficaram indignados ao saber que seus dados pessoais podem ter sido acessados pela NSA. Líderes europeus reagiram com fúria ao escopo da vigilância, com autoridades alemãs classificando a espionagem como “reminiscente da Guerra Fria” e o Ministério das Relações Exteriores da França convocando o embaixador dos EUA a apresentar uma repreensão formal.

“A credibilidade dos Estados Unidos como um defensor global da liberdade de expressão e dos direitos humanos é, sem dúvidas, prejudicada pelas revelações sobre a NSA”, disse ao CPJ Marietje Schaake, membro do Parlamento Europeu e líder em assuntos relativos à liberdade da Internet.

A natureza descentralizada da Internet, que torna a censura e o controle mais difíceis, é uma grande força para jornalistas e outros indivíduos comprometidos com a livre circulação de informação e ideias. Mas se você acredita, como a China, que a soberania nacional prevalece sobre o direito individual à liberdade de expressão, então a atual estrutura da Internet não só fragiliza a autoridade estatal, mas também impõe padrões norte-americanos de liberdade de expressão a todo o mundo.

Esse foi o argumento que se exauriu na Assembleia Geral da ONU, em setembro de 2012, no rescaldo do vídeo “A inocência dos muçulmanos”. Depois que o presidente Obama declarou a censura “obsoleta” e descreveu a liberdade de expressão como um “ideal universal”, o então presidente egípcio Mohamed Morsi demonstrou rechaço, declarando que o Egito não respeita a liberdade de expressão “que tem como alvo uma religião específica ou uma cultura específica”. Sua visão foi compartilhada por outros líderes.

A defesa feita pela ex-secretária de Estado dos EUA Hillary Clinton pelo “direito de conectar-se” durante um discurso histórico no Newseum, em janeiro de 2010, foi inicialmente saudada por defensores da liberdade online como um passo positivo. Mas no rescaldo do escândalo envolvendo a NSA, o discurso parece menos esclarecido. Diversos governos estão céticos sobre o apoio dos EUA à liberdade online e acreditam que o compromisso norte-americano com a livre expressão e associação online envolve, na verdade, o uso da Internet para realizar “mudanças de regime” e instalar governos subordinados favoráveis aos interesses dos Estados Unidos.

O Irã, sob a liderança de seu último presidente, Mahmoud Ahmadinejad, anunciou planos de construir uma Internet “halal” em separado, fechada à World Wide Web. Em março de 2012, o membro da Duma russa Aleksey Mitrofanov, diretor da Comissão Parlamentar sobre Políticas de Informação, anunciou uma legislação para cercear a expressão online. “Uma era de Internet absolutamente livre na Rússia chegou ao fim”, ele declarou. Desde então, tribunais fecharam websites críticos – um site de notícias na Internet foi destituído de sua licença ao postar vídeos contendo “linguagem chula” – e o principal blogueiro do país, Aleksei Navalny, foi condenado por acusações forjadas de suborno.

Utilizando computadores poderosos e conhecimento técnico, a NSA rompeu códigos criptografados, tornando possível para o governo dos EUA ter acesso a quase tudo que foi transmitido online, de acordo com um relatório da ProPublica. Isto tem dado aos Estados Unidos uma vantagem estratégica tremenda, uma vez que se acredita ser o único país no mundo com essa capacidade. Ainda que o alcance da espionagem online ainda esteja sendo revelado, os EUA invadiram a comunicação interna de pelo menos um meio de comunicação, de acordo com uma reportagem do Der Spiegel. Citando documentos vazados por Snowden, a revista alemã informou que os EUA acessaram as comunicações internas da Al-Jazeera, em 2006.

Tanto a Alemanha quanto o Brasil indicaram que irão reivindicar maior controle sobre sua Internet doméstica. A Deutsche Telekom, que é de propriedade parcial do governo, está buscando uma aliança com outros provedores de Internet alemães para proteger a rede nacional contra espionagem estrangeira. O Congresso brasileiro, por sua vez, está considerando uma legislação que exigiria que as empresas de Internet que operam no país armazenem seus dados em servidores domésticos, uma proposta antagonizada por empresas de comunicação e tecnologia internacionais, que dizem que um sistema como esse seria proibitivamente caro.

O Brasil também está defendendo um novo tratado das Nações Unidas para proteger a privacidade. Ao discursar na Assembleia Geral da ONU, em setembro de 2013, a presidente Rousseff declarou que o Brasil iria “apresentar propostas para o estabelecimento de uma estrutura civil multilateral para a governança e uso da Internet e para garantir a proteção efetiva dos dados que trafegam por ela”. Eduardo Bertoni, que dirige um centro pela liberdade de expressão global na Universidade de Palermo, em Buenos Aires, na Argentina, instou o Brasil a “tomar medidas concretas em apoio às palavras de Rousseff”, inclusive rejeitar o tratado da ITU, que o Brasil assinou.

A internacionalização da governança da Internet não é, obviamente, algo inerentemente ruim. Na verdade, os defensores do atual “modelo multistakeholder” (modelo com múltiplas partes interessadas) de governança da Internet também pedem por um papel reduzido dos EUA. Em uma conferência em outubro de 2013, em Montevidéu, no Uruguai, os líderes das organizações que coordenam a estrutura técnica da Internet reivindicaram a “globalização” das funções da ICANN. Os signatários incluíam o diretor do ICANN, Fadi Chehadé.

Rebecca MacKinnon, autora de um livro sobre a livre expressão online chamado Consent of the Networked e membro do conselho do CPJ, apontou que o modelo multistakeholder, no qual grupos eleitorais, incluindo governos, empresas e grupos da sociedade civil, dividem a responsabilidade pela governança da Internet, é falho, mas “melhor do que ir para a ONU”.

Ela acrescentou: “O papel que os Estados Unidos têm tentado preservar como um protetor da liberdade de abertura – muitas pessoas já não levam mais a sério. Se desejamos preservar o modelo multititular, então o poder dos EUA precisa ser reduzido”.

Schaake, do Parlamento Europeu, concordou. “O impacto negativo da exposição das atividades da NSA não é limitado aos objetivos da política externa dos Estados Unidos, mas pode prejudicar também a Internet aberta global, incluindo o modelo multistakeholder, uma vez que os governos desejam ter mais controle”, ela disse. “Devemos assegurar que os direitos humanos e os princípios democráticos sejam defendidos online. É muito preocupante que os Estados Unidos tenham minado sua própria credibilidade para impulsionar esses esforços.”

Há um risco no atual ambiente de que um debate aberto irá simplesmente oferecer uma plataforma aprimorada para que países que restringem a Internet, como a China, pressionem pelo controle da ONU. O sucesso dessa proposta, ainda que improvável, seria um evento catastrófico, de acordo com MacKinnon, e significaria o fim da Internet como um recurso global compartilhado. “Em todo o mundo, os países estão crescentemente restringindo a Internet e procurando trazê-la para o controle estatal”, observou Gilmor. Ele disse esperar que as revelações de Snowden “não acelerem a tendência, mas eu temo que elas possam fazê-lo”.



Ainda que o governo chinês argumente que a livre circulação de informação entre as fronteiras ameaça seus interesses soberanos, ele não possui qualquer objeção filosófica ao uso da Internet como uma ferramenta de vigilância. A principal reclamação de Pequim é que, quando se trata de espionagem da Internet, os EUA têm uma vantagem injusta.

Durante uma reunião que o CPJ promoveu em setembro de 2011, que reuniu jornalistas da linha de frente, tecnólogos e líderes do pensamento do Vale do Silício, eu fiquei impressionado com o comentário casual de um participante altamente informado que declarou que a NSA ama criptografia porque a agência norte-americana pode decifrá-la e a China não. Essa visão parece ter sido confirmada pelas revelações de Snowden. O fato de que o Departamento de Estado dos EUA forneceu treinamento para ativistas de todo o mundo no uso de ferramentas de comunicação seguras, incluindo criptografia e servidores proxy que sabemos que a NSA era capaz de monitorar, soa de fato cínico – não menos pela perspectiva dos governos chinês e iraniano.

A enorme operação de invasão online chinesa, patrocinada pelo Estado, que teve como alvo agências do governo norte-americano, contas pessoais de ativistas e meios de comunicação internacionais, incluindo o New York Times, Wall Street Journal e Bloomberg, gerou revolta e indignação das organizações de liberdade de imprensa internacionais, incluindo o CPJ.

Ainda que haja uma grande diferença entre esforços específicos e direcionados para espionar jornalistas internacionais conduzidos por autoridades chinesas e o suposto uso de metadados pela NSA para analisar padrões de comunicação, a operação de invasão chinesa parece menos aberrante hoje e mais como um esforço de nivelar os campos de ação. A operação de espionagem da NSA não apenas minou a autoridade moral dos EUA, mas também tornou mais difícil para a comunidade internacional argumentar que a operação de invasão chinesa está fora das normas internacionais. Afinal, o Google, que alegou ter deixado a China em parte porque hackers chineses (por implicação, com o patrocínio governamental) tiveram como alvo os e-mails pessoais de ativistas, forneceu informações sobre seus usuários ao governo dos EUA para cumprir intimações secretas.

Temerosos da espionagem norte-americana, países tendem a buscar alternativas para as empresas dos EUA, quando possível. Embora Google e Facebook sejam os sites mais populares em grande parte do mundo, de acordo com um estudo realizado pelo Oxford Internet Institute, a ferramenta de busca Baidu, que é parcialmente estatal, é dominante na China. “Isso significa que a NSA tem muito menos alcance na China, pelo menos via empresas norte-americanas”, apontou MacKinnon. “A China pode dizer: ‘Ei, a partir de uma perspectiva de segurança nacional, tomamos a decisão certa’”.

O ecossistema global de informação do qual o jornalismo internacional depende requer uma Internet aberta que transcende fronteiras. Organizações de mídia globais entregam a audiência de massa, mas o compartilhamento de informações e notícias é hoje um fenômeno em rede, com testemunhas oculares de eventos utilizando as redes sociais e outros meios eletrônicos para se comunicar direta e indiretamente com jornalistas que contribuem com suas informações e perspectivas. O sistema claramente ameaça regimes autocráticos cujo poder depende de sua capacidade de controlar informação, pelo menos no interior de suas próprias fronteiras.

Tais governos têm aumentado sua capacidade técnica para controlar e monitorar a comunicação ao longo dos últimos cinco anos. Mas suas ações, em grande parte, não possuíam legitimidade internacional. A operação de espionagem global sem precedentes conduzida pela NSA reduziu o estigma. Como resultado, jornalistas internacionais podem ver suas redes globais de informação interrompidas nos próximos anos, à medida que os países em todo o mundo intensifiquem seus esforços para censurar e monitorar a comunicação online. Alguns veículos da imprensa já alteraram sua forma de trabalhar, incluindo o Guardian. “Você não pode mais garantir anonimato a uma fonte”, disse Janine Gibson, que editou as histórias pioneiras do então colunista do Guardian Glenn Greenwald, baseadas nos vazamentos de Snowden. “Isso é uma coisa terrível para os jornalistas com quem trabalhamos.”



Joel Simon é o diretor-executivo do Comitê para a Proteção dos Jornalistas. Seu livro, Controlling the News, será publicado pela Columbia University Press em 2014.



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