Por equipe do programa da América Latina e do Caribe do CPJ
Dumesky Kersaint não vacilava quando se tratava de investigar a violência em seu bairro controlado por gangues na capital do Haiti, Porto Príncipe. Na manhã de 16 de abril, o repórter de rádio de 31 anos saiu antes do amanhecer para cobrir um tiroteio ocorrido na noite anterior perto de sua casa em Carrefour-Feuilles. Ele nunca mais voltou.
Algumas horas depois de sair, o corpo de Kersaint foi encontrado na rua, com uma bala na testa, ao lado de outro corpo que se acredita ser de uma vítima do tiroteio que Kersaint saiu para investigar.
Kersaint, de 31 anos, pai de uma bebê, trabalhava para a Radio-Télé INUREP, meio de comunicação online administrado por uma universidade local. “Ele vivia e respirava jornalismo, era sua vida inteira. Foi por isso que o contratamos”, disse Fabien Iliophène, reitor da universidade INUREP, em entrevista ao CPJ.
Há pouca chance de os assassinos de Kersaint serem processados. O Haiti está em crise, sua economia devastada por desastres naturais e a violência de gangues. O assassinato do presidente Jovenel Moïse, em julho de 2021, destruiu as esperanças restantes de uma nova era democrática, mais de três décadas após a rebelião popular que encerrou a ditadura da família Duvalier em 1986. O assassinato de Moise deixou um vácuo político que permitiu às gangues assumirem o controle de grande parte da capital e forçou os jornalistas a trabalhar em um ambiente de quase total ausência da lei, de acordo com advogados e especialistas em mídia. O resultado são organizações que tentam informar contra todas as dificuldades, mas muitas vezes são aterrorizados e levados a se autocensurar.
Cerca de 3.000 pessoas foram assassinadas e mais de mil foram sequestradas nos primeiros nove meses deste ano no Haiti, de acordo com as Nações Unidas. Agentes da lei acreditam que o país abriga cerca de 200 gangues, que às vezes atacam jornalistas ou os ameaçam pelo que eles reportam.
Kersaint é um dos pelo menos cinco jornalistas haitianos assassinados em represália direta por seu trabalho desde o assassinato de Moise. De acordo com o Índice de Impunidade Global de 2023 do CPJ, seus assassinatos não resolvidos, junto com um sexto homicídio em 2019, colocaram o Haiti como o terceiro pior país do mundo, depois da Síria e da Somália respectivamente, quando se trata de justiça para jornalistas mortos nos últimos 10 anos.
Jacques-Antoine Bazile, diretor de notícias da Radio-Télé INUREP, relatou ao CPJ que acreditava que Kersaint teria sido morto em retaliação a seu trabalho. Testemunhas disseram à universidade que Kersaint estava fotografando a cena do crime quando um homem não identificado se aproximou dele e exigiu que ele apagasse as fotos.
“Foi um crime deliberado e planejado”, disse Bazile. “É possível que ele quisesse filmar a cena do crime e, não querendo entregar a câmera para eliminar qualquer possível vestígio de evidência, acabou executado.”
O escritório da ONU no Haiti, BINUH, afirmou em um relatório recente que a impunidade continua generalizada no Haiti, com o sistema judicial afetado por corrupção, interferência política e greves, resultando em poucas pessoas sendo responsabilizadas pela violência. Sem ter a quem recorrer, alguns haitianos fizeram justiça com as próprias mãos, formando um movimento conhecido como Bwa Kale, ou “madeira descascada”, para punir supostos membros de gangues.
“Nunca vi a situação tão ruim como está agora”, disse o Especialista Independente das Nações Unidas no Haiti, William O’Neill, ao CPJ após retornar de uma viagem de 10 dias ao país em junho.
A Polícia Nacional do Haiti não tem fundos e recursos para enfrentar as gangues, com apenas cerca de 10.000 agentes ativos em um país com mais de 11 milhões de habitantes. Em um esforço desesperado para restaurar a segurança, o Conselho de Segurança da ONU votou em 2 de outubro para enviar uma força armada multinacional para o Haiti por um ano, embora não esteja claro quando isso será feito.
Neste verão no hemisfério norte, as gangues expandiram seu controle territorial para bairros residenciais, como Carrefour-Feuilles, onde milhares de moradores foram forçados a fugir, em alguns casos depois que suas casas foram incendiadas. O CPJ documentou casos de vários jornalistas que fugiram da área, incluindo pelo menos dois que disseram que suas casas foram destruídas por incêndio criminoso.
A violência de gangues também se espalhou para outras partes do país. Em julho, o proprietário e a equipe da Rádio Antarctique em Liancourt, na região central de Artibonite, no Haiti, foram forçados a fugir depois que membros de gangues incendiaram a estação, como parte de uma série de incêndios criminosos. A polícia havia fugido da cidade semanas antes e apenas retornou recentemente, de acordo com o diretor e fundador da Rádio Antarctique, Roderson Elias. Ele disse ao CPJ que a estação continua fora do ar, e que as gangues seguem controlando a cidade. “Estamos sozinhos, indefesos contra esses grupos”, afirmou Elias, que desde então deixou o país. “Um dia gostaria de voltar, mas agora não podemos contar com as autoridades locais para nos proteger”, acrescentou.
Além dos cinco jornalistas assassinados em conexão com seu trabalho desde o assassinato do presidente do país, o CPJ documentou mais quatro jornalistas mortos no mesmo período. (Em um dos quatro casos, a morte foi relacionada ao trabalho; nos outros, o CPJ ainda está tentando confirmar se os assassinatos estavam ligados ao jornalismo.)
Um dos casos, o disparo fatal da polícia contra o fotojornalista Romelson Vilcin, em outubro de 2022, durante a cobertura de um protesto, provocou uma rara investigação conduzida pelo Inspetor Geral da polícia, que puniu o policial envolvido com uma licença não remunerada de três meses, de acordo com o Inspetor Geral da Polícia Nacional, Fritz Saint Fort. Ele disse ao CPJ que o órgão recomendou que os policiais recebam treinamento para ser “mais profissionais e respeitosos” ao lidar com os cidadãos.
A morte de Vilcin ocorreu alguns dias após um ataque a outro jornalista, Roberson Alphonse, editor de notícias do jornal diário mais antigo do país, Le Nouvelliste, que também é jornalista de rádio e televisão na Magik9 e Télé 20.
Alphonse sobreviveu ao que o Miami Herald descreveu como uma “tentativa aparente de assassinato” enquanto dirigia no bairro Delmas 40B, nas primeiras horas da manhã de 25 de outubro, quando seu veículo foi atingido por vários tiros enquanto ia para o trabalho. Ele foi baleado no peito, estômago e braços, e passou oito dias no hospital. Ele disse que foi questionado por investigadores da polícia sobre o ataque enquanto estava no hospital, mas não teve mais notícias das autoridades.
O jornalista deixou o país depois disso. “Tenho que voltar, mas não sei quando será seguro. Não posso deixar que ninguém silencie minha voz”, declarou Alphonse ao CPJ.
Vários jornalistas foram sequestrados nos últimos meses. O CPJ falou com alguns que foram libertados, e eles disseram que não tinham conhecimento de investigações policiais sobre os acontecimentos.
As proteções legais para jornalistas no Haiti nunca foram efetivas, mas jornalistas locais dizem que jamais viram uma situação tão desoladora.
“O sistema de justiça haitiano tem sido historicamente ineficaz no Haiti”, de acordo com Widlore Mérancourt, editor-chefe do site de notícias online AyiboPost. Ele observou incidentes anteriores de grande visibilidade envolvendo jornalistas, como o assassinato ainda não resolvido de Jean Dominique em 2000 ou o desaparecimento de Vladjimir Legagneur em 2018. “No entanto, o sistema agora enfrenta uma crise avassaladora”, afirmou ele ao CPJ, dizendo que o assassinato de Moïse levouu o país à beira do colapso, incluindo o sistema judicial.
“Com um parlamento que não funciona, as gangues tomaram o controle de tribunais inteiros, juízes fugiram do país por segurança, e os procedimentos judiciais são irregulares… o que se traduz em detenções preventivas, investigações insuficientes e quase total impunidade para aqueles que atacam ou matam membros da imprensa”, disse Mérancourt, que também escreve do Haiti para o Washington Post.
No caso de Kersaint, várias fontes disseram ao CPJ que ele provavelmente foi assassinado por seus esforços para documentar uma série de crimes recentes em Carrefour-Feuilles, um bairro estrategicamente localizado, fortemente disputado por gangues rivais e a polícia.
Os membros da família de Kersaint relataram ao CPJ que não haviam apresentado nenhuma queixa legal e não tinham sido contatados pelas autoridades após recolher o corpo dele do necrotério. Eles afirmaram não ter conhecimento de que qualquer investigação oficial tivesse ocorrido.
A universidade também desconhecia qualquer investigação oficial sobre o assassinato de Kersaint. “Infelizmente, as condições de segurança em Carrefour hoje não favorecem o prosseguimento de um inquérito “, disse Iliophène.
A Radio-Télé INUREP recentemente renomeou seu estúdio em homenagem ao seu jornalista falecido, incluindo uma placa em seu nome, revelou Iliophène ao CPJ. A universidade, que tem cerca de 5.000 estudantes, também planeja conceder um “Prêmio Dumesky Kersaint” anual para excelência em reportagem.
Nota do editor: Este artigo foi atualizado com uma resposta do Inspetor Geral da polícia no 16º parágrafo.