Um banner dizendo “300milasos em todo mundo, 15 mil mortes pelo corona! Ficar em casa é salvar vidas!” pendurado na Cidade de Deus, favela do Rio de Janeiro, em 7 de abril de2020, durante a pandemia de COVID-19. Os jornalistas comunitários doRioenfrentan desafios diários para informar os moradores sobre a COVID-19. (AFP/Mauro Pimentel)
Um banner dizendo “300milasos em todo mundo, 15 mil mortes pelo corona! Ficar em casa é salvar vidas!” pendurado na Cidade de Deus, favela do Rio de Janeiro, em 7 de abril de2020, durante a pandemia de COVID-19. Os jornalistas comunitários doRioenfrentan desafios diários para informar os moradores sobre a COVID-19. (AFP/Mauro Pimentel)

Q & A: No Brasil, jornalistas comunitários do Rio de Janeiro enfrentam desafios diários para informar morados de favelas sobre COVID-19

Antes da chegada da pandemia de COVID-19 pandemic hit, Gizele Martins e Raull Santiago — jornalistas comunitários de favelas do Rio de Janeiro’s — trabalham para trazer notícias e informações precisas para a população local e dar visibilidade para suas lutas. As organizações das quais fazem parte estão entre as dezenas de grupos de mídia comunitária fundadas por moradores de favelas e periferias do Rio de Janeiro com o objetivo de desconstruir estereótipos, reduzir estigma, empoderar moradores, e construir uma narrativa diversa sobre suas comunidades.

O primeiro caso de COVID-19 no Brasi foi confirmado no fim de fevereiro e, desde então, mais de 101.000 casos foram relatados e pelo menos 7,000 pessoas morreram, de acordo com dados do dia 03 de maio do Ministério da Saúde. As favelas do Rio de Janeiro, densamente povoadas, respondem por cerca de 22% dos mais de 6,7 milhões de moradores da cidade, de acordo com o último censo nacional. Quando o primeiro caso de COVID-19 foi confirmado no Rio, moradores de favelas começaram a se preocupar com o impacto da pandemia nessas áreas, onde muitas das casas não tem acesso regular a água.

Até 3 de maio, havia 55 casos de mortes confirmadas por coronavirus nas favelas, de acordo com um painel de monitoramento online especial feito pelo grupo de mídia comunitária Voz das Comunidades, que sistematiza informações dos governos municipal e estadual do Rio e é atualizado diariamente. Acredita-se, no entanto, que os números são muito maiores devido à falta de testes e ao fato de que alguns dos casos de favelas são contabilizados junto dos números dos bairros maiores onde as favelas estão localizadas.

CPJ falou com Martins, do Complexo da Maré, e Santiago, do Complexo do Alemão, sobre suas experiências trabalhando nas favelas durante esta pandemia, incluindo os desafios logísticos para levar para a população informações sobre COVID-19 e a batalha contra a desinformação e as notícias falsas, algumas das quais divulgadas pelas mais altas autoridades do país.

As respostas foram editadas por questões de espaço e clareza.

Gizele Martins, jornalista comunitária, Maré 0800, Complexo da Maré

Gizele Martins, 34, é jornalista comunitária no Complexo de Favelas da Maré, onde nasceu e cresceu. Ela é jornalista comunitária há quase 20 anos, começando seu trabalho ainda quando adolescente no veículo de mídia comunitária O Cidadão. Em 2014, fundou o Maré Vive, um coletivo de mídia comunitária que tinha como objetivo reportar sobre a ocupação da Maré pelo exército como parte da preparação da cidade para a chegada da Copa do Mudo. Em 2011, Martins se formou jornalista pela PUC-Rio.

Jornalista comunitária brasileira Gizele Martins (Gizele Martins)
Jornalista comunitária brasileira Gizele Martins (Gizele Martins)

Que atividades os coletivos de mídia comunitária estão implementando na Maré durante a pandemia COVID-19?

Por volta do meio de março, a gente das mídias comunitárias da Maré, como o Maré Vive, o Maré 0800, O Cidadão, a gente fez nascer a Frente de Mobilização da Maré. E agora estão entrando outros coletivos. Estamos trabalhando juntos. Isso é algo histórico. Que pena que é num momento muito triste do coronavírus, mas é muito bom ver as mídias comunitárias trabalhando juntas nesta Frente de Mobilização. Hoje na Frente são, além de comunicadores, temos coletivos outras áreas também, de artes, e mais de 50 moradores.

A gente fez um plano de comunicação há seis semanas que contemplasse um público alvo que somos nós mesmos. A gente pensou, nas favelas nem todo mundo tem internet, nem todo mundo tem energia, nem todo mundo tem acesso ao aplicativo do SUS, nem todo mundo sabe ler.

Então, a gente alugou um carro de som, com áudio, orientado por profissionais de saúde da Maré, falando o que é o coronavírus, quais são os sintomas, os hospitais de referência, mostrando a importância de respeitar o isolamento social. A gente pensou em carros de som, faixas, cartazes, e outros meios como grafites de rua, artes de rua, vídeo com profissionais, fotos, cards, e tudo isso sendo colocado na mídia. A gente também está falando sobre a violência doméstica nas faixas.

Para além da parte de comunicação, a gente está cadastrando famílias vulneráveis para receberem cestas básicas e materiais de higiene.

Qual é a importância da mídia comunitária em geral e, em particular, durante a pandemia de COVID-19?

Tem sido um trabalho muito difícil de se fazer. É desafiador. A Maré é muito grande, então não tem faixas em todas as ruas, o carro de som não passa em todas as ruas. Então a gente tem que pensar em como alcançar o maior número de pessoas a todo momento, ou não vamos atingir todos os 140 mil moradores.

É um trabalho muito difícil, mas que vem dando resultado. Se não fosse a comunicação comunitária, o movimento popular, os comunicadores, a gente não teria conseguido um maior número de pessoas em suas casas em um momento como esse. E a gente vai continuar essa campanha porque a gente já viu que ela é muito necessária. Ela fala a linguagem da população, ela está dentro do local.

Então ter essas mídias comunitárias que dialogam diretamente com seu público é importante porque traz de dentro a realidade local, mas também faz reivindicar direitos. É isso que o Maré Vive, O Cidadão, o Maré 0800, vêm fazendo durante esses anos na Maré. Escreve o protagonismo da favela, a cultura, os perfis favelados. Denuncia a violência policial, denuncia a violência de estado. Mas também reivindica a esse Estado esses direitos, incluindo o direito à comunicação e o direito à vida

Como a pandemia afetou o seu trabalho e o trabalho da mídia comunitária na Maré?

Tem sido um trabalho bem difícil porque é tudo pela internet: reuniões, decisões, cadastros das famílias. Toda organização e mobilização, tudo isso de dentro de nossas próprias casas. É um processo que demora mais, porque a gente não pode estar na rua agindo. Até mesmo porque, na favela, muitas vezes a coisa funciona em dinheiro vivo e não em cartão. A gente não pode simplesmente sair e resolver tudo. Tudo isso sendo feito pela internet, por email, por mensagens, pelas redes sociais. Nos primeiros dias eu já senti a diferença de estar trabalhando com comunicação trancada em casa, de não poder estar na rua.

Quais são os maiores desafios que você enfrenta no seu trabalho em meio à pandemia de COVID-19?

Os maiores obstáculos são em relação à internet, em relação ao acesso aos serviços. Na minha casa não pega sinal de celular, então não consigo receber ligação e nem ligar. Tem comunicador comunitário que está sem credito no celular, tem outro que não tem computador. Essa é a realidade de muitos outros comunicadores, internet que não pega toda hora, o computador que às vezes dá problema.

Tem o desafio de não poder estar na rua entregando e falando com os moradores ao vivo.

A gente tem um grupo de mobilização, que não estão no grupo de risco, e essas pessoas vão em algum momento na rua colocar uma faixa e depois já voltam pra casa. Mas a gente não faz panfletagem, de conversar, de bater papo, de tirar dúvidas ao vivo. Esse é o maior obstáculo nesse momento. A gente não pode estar na rua, e a comunicação comunitária é feita disso, da gente estar ao vivo conversando. Isso é um desafio que a gente vem sentindo e que eu senti já nos primeiros dias

Quem tem saído para fazer mobilização de rua tem utilizado máscaras. E a gente tem pedido doação de equipamentos de proteção, máscaras, álcool gel, agua e sabão, também para proteger essas pessoas que estão indo pra rua.

A gente também tem o risco de ficar 24h na internet, nos aplicativos de mensagens, na televisão ouvindo sobre o coronavírus, pensando a campanha, e respondendo mensagem toda hora. Eu mesma ainda não consegui me desconectar.

Como você e a mídia comunitária na Maré estão lidando com a circulação de notícias falsas sobre COVID-19?

Para além de todos esses desafios, a gente tem aí as fake news e os pronunciamentos também irresponsáveis de autoridades políticas.

Nas duas primeiras semanas a gente conseguiu um maior número de pessoas em casa na Maré. Mas quando se tem um pronunciamento do presidente da república [Presidente do Brasil Jair Bolsonaro] dizendo que a população podia voltar à normalidade, aí a gente viu um aumento das pessoas nas ruas.

Para além da gente pensar essa comunicação, essas informações sobre o covid-19 e suas consequências, a gente ainda tem que ficar ligado nas informações para fazer a “contra informação” em relação as fake news e em relação a pronunciamentos irresponsáveis como esses.

——————————————————————————

Raull Santiago, jornalista comunitário, Coletivo Papo Reto, Complexo do Alemão

Raull Santiago, 31, é um jornalita comunitário do Complexo do Alemão, onde ele nasceu e foi criado. Ele é um dos fundadores do Coletivo Papo Reto, um coletivo de comunicação independente que trabalho com direitos humanos, cultura, educação, justiça e memória no Alemão. O Papo Reto é resultado de uma mobilização que começou no final de 2013 e início de2014 depois que as chuvas fortes levaram ao desabamento de casas no Alemão, deixando muitas pessoas desabrigadas.

Jornalista comunitário brasileiro Raull Santiago (Coletive Papo Reto)
Jornalista comunitário brasileiro Raull Santiago (Coletive Papo Reto)

Que atividades os coletivos de mídia comunitária estão implementando no Alemão durante a pandemia COVID-19?

No momento atual em que a pandemia é a realidade global, o Papo Reto se uniu a outras duas instituições, o Voz das Comunidades e o Mulheres em Ação, e formaram um “Gabinete de Crise”. O Gabinete de crise tem dois objetivos. Um, visa construir uma comunicação mais profunda e detalhada que dialogue com a realidade das favelas, explicando para moradores sobre a importância de se cuidar em relação ao coronavírus. O outro, com uma frente mais externa, mais publica, de pedido de ajuda e organização da sociedade para doarem alimentos, água, material de higiene e limpeza. São materiais hoje que já são necessidade para as pessoas pra evitar a contaminação e a proliferação do vírus aqui na favela, e a gente agora distribui para os moradores.

Entendemos que precisávamos organizar uma frente de comunicação que dialogasse com a realidade local, entendendo que nem todo mundo tem televisão, nem todo mundo tem internet. A nossa comunicação precisaria dialogar com cada um, de todas as realidades que existem aqui. Idosos, jovens, crianças, mototaxistas, pessoas analfabetas, pessoas que tem realidades totalmente distintas dentro desse espaço.

A principal ação que a gente fez foi, primeiro, circular um carro de som dentro da favela, com dicas importantes sobre o que fazer para evitar a contaminação e a proliferação do coronavirus, quais os cuidados básicos indicados pela OMS que deveriam ser seguidos. Essas mesmas dicas e estratégias foram escritas em faixas que foram penduradas nos principais acessos ao Complexo do Alemão, e também em cartazes que foram colados em pontos estratégicos como ponto de mototáxis, kombis e mercados aqui da favela.

E também garantimos que as mensagens destacassem a realidade local de desigualdade, como a falta de acesso a água em muitas casas. Pedimos aos moradores que têm acesso a água para compartilharem com aqueles que não têm, como um ato de solidariedade e um esforço coletivo para prevenir a disseminação do coronavírus.

Uma das principais dicas da OMS é lavar sempre as mãos o máximo possível. Só que, infelizmente, dentro do cenário de desigualdade, o abastecimento de água não é regular dentro da favela. Falta muito mais água do que têm. Então é preciso incentivar outras estratégias de acesso à água para os moradores

A gente tem direcionado nosso foco total ao Complexo do Alemão, poque é um ambiente muito grande. Mas a gente também tem ajudado grupos em outras áreas. Apoiamos a associação de moradores do Complexo da Penha, vizinha do Complexo do Alemão, a se organizarem. E também passamos algumas doações para o hospital em Acari e para a UPA do Alemão.

Qual é a importância da mídia comunitária em geral e, em particular, durante a pandemia de COVID-19?

A importância de um coletivo de comunicação dentro de uma favela é a disputa sobre a narrativa daquele lugar. Durante muitos anos apenas havia a voz de fora pra dentro, criando o imaginário da sociedade sobre a realidade que existia aqui dentro. Muitas vezes, uma imprensa que cobre a favela de fora. Muitas das pessoas trabalhando na imprensa não são da realidade periférica, da realidade da favela.

Um coletivo de comunicação de dentro da favela está ali para disputar uma outra narrativa. Não aborda apenas o porquê ele é violento, mas também mostrar as potências da favela, o porquê vivemos uma realidade onde os direitos são negados mas, ainda assim, conseguimos construir tantas coisas potentes.

É essencial durante a pandemia que a gente, que vive e trabalha nesse lugar, se comunique a partir desse espaço, com as favelas e para fora das favelas, tendo uma penetração muito mais profunda e impactante.

Como a pandemia afetou o seu trabalho e o trabalho da mídia comunitária no Alemão?

A pandemia de COVID-19 mudou minha rotina completamente. Minhas atividades de trabalho formal no centro do Rio foram paralisadas. E as atividades do coletivo Papo Reto foram paralisadas para que a gente pudesse concentrar esforços para responder à crise. As novas atividades geram uma situação de extremo cansaço, de estresse físico e psicológico, distanciamento da família. Tudo que eu fazia anteriormente parou ou reduziu drasticamente. Mas, por outro lado, a nova frente de trabalho é totalmente desgastante, exige muita presença e exige mais cuidado.

A gente monitora de perto os equipamentos de proteção individual que o grupo usa. Temos uma rotina rígida para se higienizar, para evitar nossa contaminação e das nossas famílias enquanto a gente está fazendo nosso trabalho.

A diminuição da circulação é uma coisa muito impactante pra mim. Enquanto ativista, jornalista, comunicador, eu circulava e viajava muito. Agora, faz muitos dias que eu não saio da região do entorno imediato do Complexo do Alemão.

Quais são os maiores desafios que você enfrenta no seu trabalho em meio à pandemia de COVID-19?

A maior dificuldade no Gabinete de Crise tem sido conseguir convencer as pessoas a fazerem do isolamento uma realidade nas suas vidas. Ainda tem muitas pessoas nas ruas, o fluxo e a aglomeração ainda são gigantes. Diminui, mas muito lentamente. Fica intenso e grave por conta de lideranças a nível nacional e local que fazem discursos criminosos e contrários em às indicações da OMS. O próprio presidente do país Jair Bolsonaro trata a pandemia, que já matou tantas pessoas no mundo, fazendo pouco caso, debocha. Incentiva as pessoas a não seguirem o isolamento, passa um monte de fake news, que para muitas pessoas se tornam uma verdade já que é a figura de um peso como o presidente falando tamanhos absurdos.

O grande desafio é o enfrentamento às fake news e ter estratégias diárias de comunicação para as pessoas entenderem a gravidade do que está acontecendo no país.

Como você e a mídia comunitária no Alemão estão lidando com a circulação de notícias falsas sobre COVID-19?

Algumas pessoas estão monitorando em grupos de whatsapp e o que ouvimos durante nossas atividades quando uma fake news é disseminada para imediatamente fazer um contraponto.

A equipe médica e os trabalhadores locais da saúde estão ajudando a gente nos nossos comunicados públicos. A gente tem trabalhado de perto com a eles para monitoramento dos casos, temos nos reunido semanalmente com eles monitorar os casos, saber como o quadro tem se agravado, quais os dados mínimos do que está acontecendo na favela. E isso tem sido muito importante porque a gente tem noção do que melhorou e do que precisa ser mudado na nossa estratégia para comunicar diariamente para evitar a expansão do coronavirus aqui dentro.