Combatendo Palavras

“Quando eu gritei, ele me deu um tapa com força e colocou a mão sobre a minha boca.” É assim que uma menina de 12 anos de idade, na República Centro-Africana, descreveu um episódio em que um homem a achou onde ela havia se escondido, no banheiro de sua casa, na madrugada de 2 de agosto de 2015, arrastou-a para fora e a violentou, escondido atrás de um caminhão.

ÍNDICE

Attacks on the Press book cover

O homem estaria usando o capacete azul e o colete da missão de manutenção da paz das Nações Unidas e o exame médico efetuado na menina constatou que houve agressão sexual, de acordo com um relatório da Anistia Internacional.

Mais tarde, The New York Times e The Guardian publicaram que o suposto violador era um dos 17 funcionários da ONU acusados de abuso sexual desde que a missão iniciou as atividades em Bangui, capital da República Centro-Africana (RCA), em abril de 2014.

As denúncias contra as forças de paz da ONU na RCA aconteceram quando a missão da ONU ali já havia sido encarregada de investigar queixas de que as forças de paz francesas haviam forçado um grupo de meninos sem-teto a atos sexuais em troca de dinheiro ou comida. Em abril de 2015, o fato de a ONU deixar de investigar essas denúncias de estupro e violência sexual contra crianças em Bangui nas mãos de forças de paz francesas foi destacado em um documento que vazou para o Guardian intitulado “Violência Sexual de Crianças pelas Forças Armadas Internacionais”. Um funcionário superior da ONU, Anders Kompass, foi suspenso por entregar o relatório às autoridades francesas que visitaram Bangui. A suspensão foi posteriormente considerada ilegal e cancelada.

O documento vazado deixa claro que a ONU não só tinha conhecimento desses abusos, mas que não fez qualquer tentativa para proteger as crianças, enquanto encobria sua própria omissão. A jornalista do Guardian, Sandra Laville relatou: “A ONU tem enfrentado vários escândalos no passado, relativos à sua omissão quanto às redes de pedofilia que agem na República Democrática do Congo, Kosovo e na Bósnia.”

São raros os processos relativos à violência sexual em tempos de guerra, mas quando ocorrem, geralmente são resultado direto de registros das agressões. A falta histórica de documentação e reconhecimento quanto a crimes sexuais e relacionados ao gênero, bem como o grande impacto que uma documentação significativa pode ter para garantir que os crimes sejam combatidos, estão destacados em dois artigos publicados, ” Prosecuting Wartime Rape and Other Gender-Related Crimes under International Law: Extraordinary Advances, Enduring Obstacles ” [Indiciamento de Violações em Tempos de Guerra e outros Crimes relacionados ao Gênero sob o Direito Internacional: avanços extraordinários, obstáculos duradouras], pelo jurista Kelly Askin, e ” Rape as a Crime of War: A Medical Perspective” [A violação como crime de guerra: uma perspectiva médica] pelos acadêmicos Shana Swiss e Joan E. Giller.

Uma juíza em audiência no Tribunal Penal Internacional em Haia, em março de 2014. Em zonas de conflito, não é raro ver a polícia, milícias locais, exércitos nacionais, ou tropas estrangeiras envolvidos em violências sexuais. (AP/Phil Nijhuis)

Os defensores da investigação e penalização destes casos dizem que os jornalistas são parte integrante do processo, porque eles recolhem dados, partilham testemunhos, lançam luz sobre os incidentes relatados, e dão voz às vítimas que de outra forma ficariam caladas, como aconteceu no caso dos meninos e as forças de paz francesas e o da menina estuprada em Bangui.

Em zonas de conflito, não é raro a polícia, milícias locais, exércitos nacionais, ou tropas estrangeiras estarem envolvidos em estupros e violências sexuais. Jornalistas com liberdade de relatar os fatos são muitas vezes vistos como a maior esperança de que será feita justiça, de acordo com dados coletados pelo projeto Mulheres Sitiadas [Women Under Siege, em inglês], que investiga o uso de estupro e violência sexual como arma de guerra. Quando a liberdade dos meios de comunicação para relatar essas histórias está lesada, ou quando a censura proíbe a partilha de informações, o efeito é a perpetuação da impunidade desses crimes, levando eventualmente a mais violência, e por vezes traumatizando as vítimas, mais uma vez silenciadas.

Em resposta à publicidade sobre o alegado envolvimento dos pacificadores no estupro e violência sexual contra civis, incluindo crianças, o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, anunciou, em 12 de agosto de 2015, que o chefe da missão da ONU na RCA, Babacar Gaye, havia renunciado a seu posto; segundo a imprensa ele foi demitido. Além da ocorrência de violência sexual nas mãos dos pacificadores da RCA, incluindo o estupro da menina e um episódio semelhante no Leste da RCA, os meios de comunicação reportaram sobre o que muitos viram como sendo uma resposta inadequada aos abusos praticados pelos pacificadores franceses.

“Nada disto vem à luz até que um jornalista fique sabendo”, disse Paula Donovan, cofundadora e codiretora da AIDS-Free World [Mundo sem AIDS], sobre o papel da mídia na demissão de Gaye. De acordo com Donovan, que já trabalhou com a UNICEF e como assessora do enviado especial da ONU para o HIV/SIDA na África, “Usar a mídia é realmente a única maneira de documentar os fatos… Quando o público se enfurece, e isso só acontece quando a imprensa está envolvida, só então é que os Estados-membros reagem. ”

Numa audiência de 9 de dezembro de 2015, em Washington, sobre as missões de paz da ONU, a embaixatriz dos EUA na ONU, Samantha Power, testemunhou que, embora tenha havido melhoras na comunicação e resposta a tais denúncias, “incontáveis vezes temos ouvido de ONGs ou de jornalistas sobre abuso e exploração sexual, em vez de… da própria ONU”. Power disse que a ONU precisa melhorar sua capacidade de investigar denúncias de abuso por parte de pacificadores para encurtar o tempo “entre uma denúncia e um acompanhamento de fato”.

Em 22 de dezembro de 2015, o The New York Times informou que o Alto Comissário da ONU para os Direitos Humanos, Zeid Ra’ad al-Hussein, disse que ordenou a seus subordinados para informá-lo imediatamente assim que surgissem denúncias de tais abusos, mesmo quando isso signifique ignorar a cadeia habitual de comando. Hussein disse que “não queria ler em algum lugar na imprensa, ou ouvir de alguém da ONU, que um oficial de direitos humanos começou a investigar uma denúncia sem eu saber. ”

A República Centro-Africana não está só quando se trata de omissão das autoridades para lidar com o abuso sexual. Na República Democrática do Congo (RDC), onde cerca de 48 mulheres são estupradas por hora, de acordo com um estudo publicado no American Journal of Public Health de junho de 2011, e o governo tem um longo histórico de não se importar muito com a violência sexual entre sua população.

Karen Naimer, diretora do Programa sobre Violência Sexual em Conflitos na Physicians for Human Rights (PHR) [Médicos pelos Direitos Humanos], uma organização sem fins lucrativos baseada em Nova York que usa a ciência e a medicina para documentar e chamar a atenção sobre as atrocidades em massa e graves violações dos direitos humanos, tem pressionado pela penalização de crimes de violência sexual na África Oriental e Central. Ela disse que viu em primeira mão o papel que os meios de comunicação – tanto nacionais como internacionais – podem desempenhar para alterar o curso nos casos sistêmicos de estupro.

Em 2013, na pequena cidade ocidental da RDC, Kavumu, a equipe do PHR começou a ouvir relatos sobre dezenas de crianças que haviam sido raptadas de suas casas à noite, foram vítimas de violência sexual e, em seguida, devolvidas às suas casas. Embora os autores dos crimes ainda não tenham sido identificados, a pressão para investigar veio principalmente de plataformas de mídia como a Reuters, Foreign Policy [jornal Política Externa] e da BBC. Os meios de comunicação internacionais muitas vezes conseguem informar mais livremente sobre episódios de violência sexual em países onde a liberdade de imprensa é restringida. Mas a imprensa local e nacional também pode influenciar profundamente abordagens locais e a conscientização sobre esses crimes.

“Nós temos lutado muito desde o início – nós da Médicos pelos Direitos Humanos e outras organizações no palco dos acontecimentos – para pressionar por investigações relevantes e penalizações para estes casos”, disse Naimer sobre os raptos em Kavumu. Ela disse que o governo de Kinshasa pouco fez até a mídia internacional divulgar a história, o que não foi feito pelos noticiários locais. Ela disse que muitos grupos de base e membros da comunidade local tentaram chamar a atenção das autoridades locais e líderes políticos em Kinshasa para o problema, com sucesso limitado, até que o PHR compartilhou as informações sobre os casos com a jornalista Lauren Wolfe, colunista do Foreign Policy, que é diretora do projeto Mulheres Sitiadas [ Women Under Siege] e ex-editora-chefe do Comitê para a Proteção dos Jornalistas. “Imprimir o artigo e os desafios para acompanhar esses casos de forma significativa, e publicá-los no Foreign Policy, teve um enorme impacto, e depois, claro, a BBC pegou a notícia e outros se seguiram, e isso de fato pressionou fortemente o governo a reagir, na capital e no leste do país”, disse Naimer. Tanto as vítimas quanto os funcionários foram encorajados a se manifestar e a fazer perguntas sobre o que estava sendo feito, ela disse.

Ainda assim, Naimer disse que a mídia local pode ter um impacto profundo e muitas vezes mais imediato nos sobreviventes de violência sexual, dada a sua proximidade e capacidade de se relacionar com as histórias que estão sendo contadas.

“Um dos grandes problemas é o estigma associado à violência sexual e os jornalistas e os meios de comunicação têm um enorme papel a desempenhar para reverter esse estigma, para focalizar o estigma nos autores e para dar força aos sobreviventes, e proporcionar mais reconhecimento e respeito à sua experiência vivida”, disse Naimer. “O papel a ser desempenhado pelos jornalistas não é apenas trazer o problema à luz, eles também podem remodelar o discurso.”

Jornalistas locais que assim o fazem correm os seus próprios riscos, disse Wolfe. “Os poucos jornalistas que se atreveram a escrever sobre a violência sexual no Congo em muitos casos foram ameaçados”, disse Wolfe. “Não é um lugar fácil de falar sobre essas coisas. As vítimas têm dificuldade em falar sobre o assunto e até mesmo os jornalistas recebem o recado de que não é algo que se deva noticiar.”

Os jornalistas locais enfrentam censura e autocensura e prisão em muitos países, sendo a Eritreia, Somália e Etiópia os que mais se destacam, segundo a pesquisa do CPJ. Em 2011, um grupo de jornalistas foi indiciado ​​criminalmente no Sudão por informar sobre o estupro e tortura de um jovem ativista e, em 2013, um jornalista foi preso na Somália depois de entrevistar uma suposta vítima de estupro. Em 2015, um jornalista nigeriano foi ameaçado depois que informou sobre o suposto estupro de meninos em uma escola no norte da cidade de Kano. Nesses países, a mídia internacional pode ser decisiva.

A jornalista veterana, Mae Azango, recebeu o recado a que Wolfe aludiu quando ela decidiu informar sobre temas suscetíveis relacionados ao gênero no seu país do oeste Africano, a Libéria. Azango, que recebeu o prêmio International Press Freedom Award [Prêmio Internacional de Liberdade de Imprensa] do CPJ em 2012, foi ameaçada e acabou sendo forçada a se esconder com sua filha de nove anos de idade, em virtude de suas reportagens sobre a prática generalizada de mutilação genital feminina no país.

Ao falar sobre seu infortúnio em 2012, Azango descreveu os desafios de ser uma jornalista que pretende abordar um assunto tabu. Mesmo assim, ela continuou escrevendo sobre um tema que a preocupava há anos – a luta das mulheres e meninas liberianas. O poder da voz de Azango – como mulher, como mãe e como nativa escrevendo sobre seu próprio país – ficou evidente quando oficiais da Libéria tomaram uma atitude sem precedentes ao ordenar a suspensão da mutilação genital feminina em todo o país.

“Eu sou uma pessoa apaixonada e posso transformar a minha paixão em algo que vai ajudar os outros”, disse Azango.

“Infelizmente, os jornalistas locais têm de ser os mártires e os heróis neste caso”, disse Donovan. Jornalistas internacionais estão muitas vezes em melhor posição para promover uma reação de organismos multilaterais porque, disse, “a ONU não tem medo da imprensa local. Eles têm medo de que a mídia internacional aborde uma história local.” Na visão de Donovan, “bons jornalistas não desenterram simplesmente escândalos ou expõem a hipocrisia. É triste dizer, os meios de comunicação tornaram-se a consciência da ONU, a outra metade que falta da equação de pesos-e-contrapesos “.

Uma porta-voz da ONU reconheceu que os jornalistas são importantes para garantir a transparência e a prestação de contas quando se trata de divulgar abusos que estavam encobertos, mas discordou que a organização não seja capaz de reagir adequadamente a não ser que seja pressionada pela ampla divulgação de determinados casos pela mídia.

“A mídia tem um papel fundamental a desempenhar na divulgação da exploração e abuso sexuais”, disse Ismini Palla, vice-chefe em exercício de assuntos públicos dos Departamentos da ONU de Operações de Manutenção da Paz e Suporte de Campo. “Reportagens responsáveis e justas da mídia sempre receberam o apoio das Forças de Paz da ONU, em consonância com os princípios fundamentais da organização”. Palla observou que a ONU fornece atualizações regulares e abrangentes para a mídia sobre casos de abuso sexual, e disse que não é verdade que a organização só investigue quando a mídia está envolvida. “A exploração e abuso sexuais por parte do pessoal da ONU são inaceitáveis”, disse ela. “Cada caso é investigado e estamos empenhados na condescendência zero e impunidade zero.”

De acordo com Palla, “a missão de Manutenção da Paz da ONU tem sido transparente sobre a questão por meio de relatórios públicos regulares, conferências especiais de imprensa, bem como dados on-line disponíveis no site de Conduta e Disciplina do Departamento de Apoio de Campo, atualizados mensalmente. O secretário-geral publica um relatório anual sobre medidas especiais para proteção contra a exploração e abuso sexual, bem como dados complementares com atualizações do status de cada denúncia”.

Palla disse que a ONU está também revendo propostas, inclusive para as equipes de resposta, sistemas de reclamação, medidas punitivas e a criação de um fundo para assistência às vítimas. “As consultas também estão em andamento, sendo que a Assembleia Geral irá começar a dar informações específicas relativas ao país quanto a denúncias confiáveis sob investigação”, disse ela.

Não obstante, mesmo quando tais histórias são reportadas, por vezes a censura silencia as vozes dos sobreviventes de violência sexual. Em setembro de 2015, o governo da RDC inicialmente proibiu a exibição ou circulação de um documentário, “The Man Who Mends Women: The Wrath of Hippocrates” [O Homem que Conserta Mulheres: A Ira de Hipócrates], que conta a história do ginecologista Denis Mukwege do Hospital Panzi de Bukavu, que trata vítimas de estupro na região oriental devastada pela guerra do país. O filme foi proibido sob a alegação de que reflete negativamente a imagem dos militares do país e que o depoimento era enganoso ou falso, de acordo com um comunicado de imprensa do ministro da Informação, Lambert Mende. Naimer disse que, quando um documentário é rejeitado por um governo é porque revela uma verdade desagradável, “dá um recado sombrio ao povo.” A censura, embora nem sempre eficaz “pode ​​ser muito re-traumatizante”, disse ela.

“Muitas mulheres no Congo queriam contar suas histórias – elas queriam ser ouvidas”, disse Naimer.

Em 19 de outubro de 2015, após mais de um mês de cobertura internacional da mídia, incluindo o Guardian, Al Jazeera, Reuters e Foreign Policy, o governo da RDC permitiu que o filme fosse transmitido na televisão nacional.

Na visão de Wolfe, a mídia internacional tem uma responsabilidade especial de fazer com que as histórias das vítimas de violência sexual sejam ouvidas. A mídia local talvez nem sempre consiga contar essas histórias, ela disse, acrescentando: “Mas se você aparecer e houver pessoas que queiram ter suas histórias ouvidas, e você puder contá-las, eu acho que você tem a obrigação de contá-las.”

Kerry Paterson é colaboradora de pesquisas para o programa África do CPJ. Ela foi editora colaboradora do Journal for International Law and International Relations e trabalhou com os Médecins Sans Frontières, no Projeto Mulheres Sitiadas do Centro de Mídia de Mulheres, e no Departamento de Saúde Global e Direitos Humanos do Hospital Geral de Massachusetts.

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