Ataques à Imprensa em 2010: Prefácio

Por Riz Khan

É uma faca de dois gumes. A mesma tecnologia que tornou a vida dos jornalistas bem mais fácil também a complicou muito mais. Mesmo nos países menos desenvolvidos, onde até infraestrutura simples como estradas asfaltadas é artigo de luxo, o acesso à telefonia móvel, a portabilidade dos sistemas de radiodifusão via satélite, o crescimento das plataformas de publicação e a popularidade dos canais de notícias transmitindo 24 horas fazem com que as notícias cheguem instantaneamente aos lares de centenas de milhões de pessoas.

ATAQUES À
IMPRENSA EM 2010

Prefácio
Introdução
Análise Internet
Análise Américas
Argentina
Brasil
Colômbia
Cuba
Estados Unidos
Equador
Haiti
Honduras
México
Venezuela
Ataques e fatao
em toda a região

O que cria um problema para os que querem controlar o fluxo de informações. É difícil manipular informações quando as notícias estão na TV, rádio e Internet antes que qualquer pessoa consiga colocar as mãos na mensagem. Quais são então as opções que sobram quando se quer impedir a divulgação de determinada informação?

A intimidação vem cada vez mais se tornando o instrumento preferido: amedrontar jornalistas para que não investiguem notícias ou deixar que percebam que a interferência deles não é bem-vinda. Alguns cadáveres pelo caminho também ajudam. Talvez em nenhum lugar isso seja mais evidente do que no México, onde a matança decorrente das drogas afeta milhares de vidas, incluindo as vidas de muitos jornalistas. Para atingir o objetivo, as gangues despejam corpos decapitados e mutilados na beira de estradas. Quando não é suficiente, metralhar as instalações dos meios de comunicação acrescenta um pouco mais de ênfase.

Na verdade, os mais famosos jornalistas internacionais não são os que enfrentam os maiores perigos, embora o Iraque e a ex-Iugoslávia tenham feito vítimas, incluindo o meu amigo Terry Lloyd, que perdeu a vida. Correspondentes internacionais são muitas vezes visitantes que não têm uma atividade contínua e diária como repórteres e não estão tão envolvidos assim com as notícias ou problemas. Os vistos deles podem simplesmente ser negados, impedindo que entrem em determinado país. Os verdadeiros campeões, os que resistem a ameaças e pressões todos os dias, são mesmo os jornalistas locais.

Fiquei impressionado ao ouvir recentemente a história da jornalista brasileira Daniela Arbex, que tem aquela rara perseverança de acompanhar uma notícia até o fim, apesar das dificuldades e ameaças. Ela já ganhou inúmeros prêmios por artigos publicados na Tribuna de Minas que, dentre outras coisas, denunciou a negligência a vítimas de estupro, o abuso de doentes mentais e o recrutamento de crianças em idade escolar pelo tráfico de drogas. Em cada um desses casos, as reportagens dela mudaram políticas do governo. Um desafio diferente enfrenta Amira Hass, jornalista israelense e filha de dois sobreviventes do holocausto que vive em Gaza e envia reportagens de lá e da Cisjordânia. Ela enfrenta duras críticas por parte dos israelenses por se atrever a criticar a política de seu país nos territórios palestinos, embora ela também denuncie duramente a liderança palestina. Apesar das condições que enfrenta, Hass continua a desafiar qualquer abuso de poder.

Como sabemos, as autoridades no poder representam a maior ameaça em muitos lugares, algumas vezes tomando as fontes de notícias diretamente como alvo, outras impondo regras restritivas que dificultam ainda mais o trabalho de noticiar. Poucos países fogem a essa regra; todos os governos gostariam de controlar o fluxo de informações.

Quando se trata de atingir jornalistas, os “habituais suspeitos”, como o Irã e o Egito, são normalmente os primeiros a serem acusados. No entanto, essa lista deve ser ampliada: as organizações internacionais têm emitido pareceres similares sobre o Sri Lanka, a Somália e outros. O meu próprio canal de televisão, a Al-Jazeera, tem sido alvo de mais governos ao redor do mundo do que qualquer outro canal de notícias até agora. Há um preço a ser pago pela atitude de falar abertamente, por mostrar não apenas o disparo dos mísseis, mas também, como diz um colega, onde eles aterrissam.

 

Então o que acontece numa era de blogs, tweets, redes sociais e jornalismo cidadão, onde qualquer pessoa pode atuar como “repórter” ou mobilizar apoio para uma ideia qualquer? Como isso afeta o fluxo de informações e quem o controla?

Talvez seja aí que as regras do jogo mudem. Para os jornalistas, os limites entre os meios oficiais e não oficiais ficam indefinidos, tornando mais difícil para as organizações de notícias estabelecidas distanciarem-se do que poderia ser percebido como pontos de vista politicamente tendenciosos. Os meios de comunicação nos Estados Unidos foram particularmente afetados. Os canais daquele país, tradicionalmente neutros, agora apresentam mais programação e personalidades com pontos de vista claros e francos. Despertar a atenção do público através de comentários agressivos pode até ajudar nos índices de audiência, mas não ajuda necessariamente os jornalistas a conduzirem o trabalho de forma eficaz.

Há também o risco, num mundo cada vez mais conectado pela Internet, do menor comentário improvisado transformar-se em um inesperado campo minado. Figuras proeminentes da imprensa, como Helen Thomas, veterana na Casa Branca, a jornalista de longa data da CNN Octavia Nasr, Rick Sanchez da CNN e Juan Williams da NPR, descobriram que dar uma opinião pode custar o emprego. Em cada um desses casos, os profissionais não se manifestaram em sua regular afiliação na imprensa (e com comentários que refletem pontos de vista bastante diferentes), mas no geral todos contribuíram para o desaparecimento dos limites entre o noticiário tradicional e o admirável mundo novo dos comentários nas redes sociais.

Dado o poder das redes sociais – que têm derrubado governos, mobilizado oposições e criado demandas por prestação de contas – é compreensível que muitas autoridades sintam uma ameaça a seu controle. Observe o confronto do Google com o governo da China. Em todo o mundo, os blogueiros já enfrentam os mesmos riscos que jornalistas tradicionais sempre sofreram: intimidação, prisão, tortura e até morte.

A situação é mais complicada pela tradicional disposição dos meios de comunicação de convidar o público a participar cada vez mais: “envie seu e-mail”, “entre em contato conosco através do Twitter”, “compartilhe conosco no Facebook”, “mande um texto pelo celular”. O velho mundo tenta encarar isto de frente, mas o que acontece com a informação justa e equilibrada dada por jornalistas experientes, e como podem os meios de comunicação salvaguardar a neutralidade e a credibilidade?

Isso leva à minha última pergunta: até que ponto um volume cada vez maior de comentários públicos transforma os órgãos de comunicação e seus jornalistas num alvo ainda mais visado? Como eu disse, é uma faca de dois gumes e, neste caso, todos correm o risco de se cortar.

Riz Khan é apresentador do programa “Riz Khan” e “Riz Khan One on One” na Al-Jazeera em inglês.