Mesmo com o comércio e os novos sistemas de comunicação nos transformando em cidadãos globais, as informações necessárias para garantir a responsabilização muitas vezes não ultrapassam as fronteiras. Novas plataformas, como as redes sociais, são ferramentas valiosas, mas a luta contra a censura está longe de acabar. Por Joel Simon.

 

A Próxima Revolução da Informação:
Abolir a Censura

Por Joel Simon

As batalhas mais importantes da Primavera Árabe foram travadas nas ruas, mas houve também uma luta feroz pelo controle da informação. No Egito, o governo desconectou a Internet, desligou canais via satélite e orquestrou ataques a correspondentes estrangeiros. Nada disso funcionou. Manifestantes foram capazes de manter canais de comunicação abertos para ganhar a simpatia e o apoio a sua causa, chamar atenção para o histórico de abusos e corrupção do governo egípcio e assegurar que haveria testemunhas de qualquer violência cometida contra eles. A visibilidade global dos protestos aumentou o custo da repressão do governo a tal ponto em que ela se tornou insustentável.

Polícia detém fotógrafo durante manifestação contra o governo em Santiago. (Reuters/Carlos Vera)

Novas plataformas de informação, como o Twitter e o Facebook, ajudaram jornalistas e outros cidadãos a romper o bloqueio de informação de Hosni Mubarak e foram a fonte de verdadeiro entusiasmo. Mas, apesar dos triunfos da Primavera Árabe, a censura está viva e forte. De fato, algumas das mais importantes histórias de 2011 poderiam ter tido pouca ou nenhuma cobertura devido ao uso eficaz da censura. Estas incluem os distúrbios rurais na China; a luta pelo poder no Irã; a relação entre militantes, a Al-Qaeda e o serviço de inteligência paquistanês; a instabilidade política na Etiópia; e as batalhas sangrentas entre cartéis rivais de traficantes de drogas no México.

Jornalistas que buscaram cobrir estas e outras histórias enfrentaram violência e repressão. No Paquistão, o repórter investigativo Saleem Shahzad foi raptado e assassinado em maio, após divulgar as ligações entre os serviços de inteligência nacionais e a Al-Qaeda. Em Nuevo Laredo, México, traficantes de drogas sequestraram, assassinaram e decapitaram a jornalista María Elizabeth Macías Castro depois que ela tentou utilizar as redes sociais como forma de contornar a censura imposta pelos traficantes por meio da violência. Em Addis Abeba, Etiópia, diversos jornalistas, incluindo dois suecos, foram presos sob a acusação de terrorismo em retaliação à cobertura que realizavam sobre grupos separatistas e de oposição.

Na verdade, a lição que governos repressores e outros inimigos da liberdade de imprensa podem ter tirado da Primavera Árabe é que manter um regime de censura viável é ainda mais urgente na Era da Informação. Afinal, uma vez que o controle da informação escapa de suas mãos, é difícil manter-se no poder. A habilidade do governo sírio de controlar a mídia nacional e manter repórteres estrangeiros fora do país deu-lhe uma enorme vantagem para sufocar os protestos. As redes sociais tornaram impossível a supressão total da informação, mas o que emergiu da Síria foi fragmentado e não penetrou na consciência global com a mesma intensidade que a procedida do Egito.

Portanto, a batalha contra a censura continua. A tecnologia é uma ferramenta fundamental nessa luta, mas também novas e inovadoras estratégias políticas devem ser empregadas. Enquanto governos repressivos há anos procuram controlar a informação crítica, o custo da censura é muito mais alto hoje, em função da natureza globalizada da nossa existência. Na China, por exemplo, quando as autoridades abafam informações a respeito da segurança alimentar, não estão censurando notícias apenas dentro de suas fronteiras nacionais. Uma vez que a China exporta muitos alimentos industrializados, seus líderes estão efetivamente censurando notícias de interesse e preocupação para pessoas em todo o mundo.


Mesmo conforme o comércio e os novos sistemas de comunicação nos transformam em cidadãos globais, as informações que necessitamos para garantir a prestação de contas muitas vezes param nas fronteiras nacionais. Sem informação adequada, cidadãos globais se tornam basicamente impotentes. “Sempre que há censura em qualquer lugar, há censura em todo lugar”, observou o presidente da Universidade de Columbia, Lee C. Bollinger, em evento que celebrou o 30º aniversário do CPJ, em março de 2011.

Em uma democracia em funcionamento, há poucas limitações à imprensa, pois o debate público informado é necessário para garantir a prestação de contas. Por outro lado, todo sistema totalitário baseia-se no controle e na manipulação da informação, o que permite aos líderes governar sem fiscalização. Globalmente, a situação atual se assemelha mais a uma sociedade totalitária, sem uma estrutura legal que assegure a livre circulação da informação entre as fronteiras.

Jornalistas e outros que se dedicam a coletar informações nas linhas de frente operam em um vazio jurídico. Ainda que o direito de todos a “buscar e receber informação por meio de qualquer mídia e independentemente de fronteiras” seja consagrado no Artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos e em outros instrumentos legais internacionais, a realidade é que existem poucos mecanismos jurídicos efetivos para o combate à censura em escala internacional.

O que pode ser feito para combater a censura na Era da Informação? A chave é mobilizar os diversos eleitorados que têm interesse em assegurar a livre circulação da informação–a sociedade civil e grupos de apoio, empresas, governos e organizações intergovernamentais–e criar uma coalizão global contra a censura.

Embora a capacidade de buscar e receber informação seja um direito humano individual, há um interesse coletivo em garantir que a informação circule livremente. Afinal, o ataque a um jornalista egípcio, paquistanês ou mexicano inibe a capacidade das pessoas de todo o mundo de receber a informação que o jornalista teria fornecido. Grupos de defesa com uma agenda global, especialmente organizações ambientais e de direitos humanos, têm forte interesse em promover a liberdade de imprensa mundial, mesmo que não seja parte de seu mandato explícito. Por exemplo, o combate ao aquecimento global dependerá em grande medida das políticas chinesas, que, em razão da censura oficial, são muitas vezes envoltas em segredo. Por sua vez, organizações de direitos humanos como a Human Rights Watch estão contratando ex-jornalistas para fornecer informações em tempo real das linhas de frente.

“Reconhecemos as habilidades que os jornalistas agregam à documentação dos direitos humanos – conhecimento sobre temas, países e instituições; capacidade de reunir informações de maneira rápida; e uma noção de como contar uma história”, disse Iain Levine, diretor de programas da Human Rights Watch. Pesquisadores de direitos humanos estão, de fato, preenchendo a lacuna deixada pelas organizações internacionais de mídia que reduziram o número de seus correspondentes no exterior.

Por diversas razões, a comunidade empresarial global tem um interesse claro em assegurar que a informação circule de maneira livre. Com operações e cadeias de fornecimento espalhadas pelo mundo, é crucial estar ciente de agitações políticas, desastres ambientais e outras interrupções e movimentos globais–o que não pode ser feito de maneira eficaz quando informações-chave são censuradas. Empresas de serviços financeiros que administram carteiras globais operam sob as mesmas condições.

De modo mais amplo, em uma economia da informação, pode argumentar-se que a censura em si é uma restrição ao comércio. Por exemplo, a insistência da China para que o Google censure seus resultados de pesquisa prejudica o modelo de negócio da empresa. E Isaac Mao, empresário e blogueiro chinês, observa que a censura online chinesa pode estar começando a afetar toda a rede mundial.

“A China estabeleceu seu Grande Firewall para o ingresso ao mundo visando bloquear o livre acesso das pessoas a sites estrangeiros”, disse Mao. Mas pesquisas recentes revelaram um impacto global, incluindo casos em que usuários da Internet do Chile à Califórnia foram roteados através de servidores na China–e então foram pegos pela teia de censura do país. “Pessoas que vivem em Nova Iorque e tentam estudar chinês atingiriam este muro quando os sites incluem algumas ‘palavras sensíveis'”, explicou Mao.

Um artigo publicado pelo Google em seu blog de políticas públicas, no fim de 2010, instava a comunidade internacional a “adotar medidas para assegurar o livre fluxo de informação online” e observava que “o bloqueio direto do governo a um serviço da Internet equivale a um funcionário da alfândega barrar todos os bens de um determinado país na fronteira”.

Especialistas em comércio dizem que seria extremamente difícil incorporar exigências anticensura em acordos comerciais existentes. Mas algumas conexões já estão sendo traçadas. Em outubro de 2011, o embaixador dos Estados Unidos na Organização Mundial do Comércio escreveu ao seu colega chinês solicitando informações sobre as políticas de Internet da China e observando que “algumas empresas com sede fora da China enfrentaram desafios na oferta de seus serviços aos consumidores chineses, quando seus sites eram bloqueados pelo firewall nacional da China”. Em resposta, os chineses expressaram disposição para dialogar com as empresas, mas observaram explicitamente: “Nós nos opomos ao uso da liberdade na Internet como pretexto para interferir nos assuntos internos de outros países”.

A reação chinesa aponta para um desafio significativo: a percepção internacional de que a liberdade na Internet é um cavalo de troia utilizado pelos Estados Unidos para enfraquecer seus adversários políticos. Em janeiro de 2010, a secretária de Estado norte-americana Hillary Rodham Clinton discursou no Newseum, em Washington, e definiu uma política governamental norte-americana para promover a liberdade na Internet em todo o mundo. “Nós defendemos uma única Internet, onde toda a humanidade tenha igual acesso ao conhecimento e às ideias”, disse Clinton.

O discurso–e a política–foi bem recebido por defensores dos direitos humanos e liberdade de expressão. Mas, como argumentou Evgeny Morozov em seu mais recente livro, The Net Delusion: The Dark Side of Internet Freedom [A ilusão da rede: o lado sombrio da liberdade na Internet, em tradução livre], a fala de Clinton reforçou a noção na mente de muitos líderes globais de que a liberdade na Internet é nada mais que um instrumento de política externa norte-americana.


Em uma era em que as motivações dos Estados Unidos são amplamente vistas com desconfiança, observou o jornalista paquistanês Najam Sethi, uma abordagem multilateral para a liberdade de imprensa tem mais chances de gerar um impacto positivo. Após o assassinato de Saleem Shahzad, por exemplo, o almirante norte-americano Mike Mullen, recentemente reformado do cargo de chefe do Estado-Maior Conjunto, disse a jornalistas em Washington que o governo paquistanês havia “sancionado o assassinato”.

“Em tempos normais, teria sido algo positivo”, disse Sethi a respeito da condenação norte-americana. “Mas por ter envolvido a situação da segurança nacional do Paquistão, a declaração desorientou as pessoas e favoreceu a narrativa nacionalista. Há confusão na mente da população no Paquistão sempre que os Estados Unidos tentam ajudar.”

É necessário, portanto, uma ampla coalizão global contra a censura, que reúna governos, a comunidade empresarial, organizações da sociedade civil e a mídia. Estes influentes eleitorados devem se unir em apoio à liberdade de informação, pressionando organizações internacionais, inclusive grupos intergovernamentais, como a Organização dos Estados Americanos (OEA), o Conselho da Europa e as Nações Unidas, para criar uma estrutura jurídica que assegure que sejam respeitadas, na prática, a liberdade de imprensa e a liberdade de informação. Organizações de direitos humanos e liberdade de imprensa devem buscar oportunidades de se pronunciar sobre casos de liberdade de imprensa em nível internacional, a fim de criar um conjunto de precedentes globais.

De fato, o Artigo 13 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos proíbe expressamente a censura prévia, um veto reafirmado em uma decisão de 2001 pela Corte Interamericana, com sede na Costa Rica, que determinou que o Chile havia violado a Convenção ao vedar o filme de Martin Scorsese, “A última tentação de Cristo”.

Catalina Botero, relatora especial da OEA sobre liberdade de expressão, defende que ameaças e ataques violentos cometidos por indivíduos constituem uma forma de “censura indireta” e, assim, também violam o Artigo 13. Ela reconhece, porém, que é mais difícil adotar este argumento em um contexto mundial. “A proibição explícita da censura no Artigo 13 não existe na Convenção Europeia dos Direitos Humanos nem na Declaração Universal dos Direitos Humanos”, afirmou Botero.

No campo político, os líderes de organizações internacionais devem tornar-se públicos defensores da liberdade de expressão, buscando isolar e pressionar os países que inibem ativamente o fluxo de informações entre os países. O papel dos relatores especiais dentro do sistema internacional também deve ser fortalecido. Frank LaRue, o relator especial da ONU sobre liberdade de opinião e de expressão, divulgou um relatório em junho que declarava o acesso online um direito fundamental que os governos devem restringir apenas em circunstâncias muito limitadas. Porém, o secretário-geral e outros líderes da ONU, ainda que apoiem amplamente a liberdade na Internet em seus comentários públicos, não adotaram as conclusões de LaRue nem defenderam sua implementação.

A Internet e as novas tecnologias de informação tornaram altamente difuso o processo de compilação e divulgação de notícias. Este novo sistema tem algumas vantagens amplamente reconhecidas. Ele democratiza o processo de coleta de informação, permitindo a participação de mais pessoas com perspectivas diferentes. Abre a mídia não apenas para “jornalistas cidadãos”, mas também para organizações de defesa e da sociedade civil. O grande volume de pessoas que participam desse processo desafia os modelos autoritários de censura baseados em hierarquias de controle.

Andy Carvin, autodenominado o “homem da mídia social” da Rádio Pública Nacional (NPR, por suas iniciais em inglês), que utilizou o Twitter para noticiar as revoltas árabes, observa que “blogueiros e jornalistas cidadãos” agora fazem parte da mescla de mídia no mundo árabe. Como resultado, as autoridades sírias, ainda que capazes de manter os grandes veículos de imprensa fora do país, não conseguiram suprimir completamente as notícias.

“Se seu objetivo tem sido evitar que o mundo externo saiba o que está acontecendo, eu acho que a Síria não tem sido muito bem-sucedida”, disse Carvin. “Mesmo que sempre sufoquem o acesso à Internet de maneira a perdermos contato por um tempo, eventualmente o acesso é restaurado.”

Mas há também consideráveis fragilidades nesse novo sistema. Os profissionais autônomos, blogueiros e jornalistas cidadãos, como os que relatam os fatos na Síria, trabalham com recursos escassos e pouco ou nenhum suporte institucional. Eles são muito mais vulneráveis à repressão do governo. As novas tecnologias são uma faca de dois gumes, e governos autocráticos estão cada vez mais desenvolvendo sistemas para monitorar e controlar os discursos online que são tão efetivos quanto difíceis de detectar.

Assim como cidadãos globais têm interesse em assegurar que as informações circulem livremente, forças poderosas–organizações criminosas, grupos militantes, governos repressivos–têm enorme interesse em controlar as notícias. A censura dentro das fronteiras nacionais interrompe o fluxo de informação ao redor do mundo. Uma coalizão global contra a censura precisa ser criada com base em uma ideia simples: a censura em qualquer lugar afeta pessoas em toda parte. Pode e deve ser abolida.

Joel Simon é diretor-executivo do Comitê para a Proteção dos Jornalistas. Liderou uma missão do CPJ ao Paquistão em 2011.


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